Opinião

Por que a candidatura de policiais e militares bate recorde em 2020?

Já parou para pensar sobre a pergunta do título desta coluna? Independemente da resposta – se positiva ou negativa – te convido à reflexão. Recentemente trouxemos dados da Pesquisa Travessia sobre o eleitorado brasileiro que está mais inclinado à direita. Não é mera coincidência. E não é coisa só de Brasil. As crises do capitalismo, de confiança no sistema, nas instituições (incluindo os partidos) e nos políticos contribuíram para isso. A falta de responsividade de governos frente às demandas sociais como saúde, emprego e segurança intensificaram o desgaste. A atuação de milícias digitais que alimentaram (e alimentam) ressentimentos, medos, ódio e desesperança aumentaram o esgarçamento do tecido social e levaram a esse recrudescimento.

Por que eu resgato o assunto? Porque agora trago outro dado que corrobora com o primeiro: o Tribunal Superior Eleitoral registrou um número recorde de candidatos militares, bombeiros e policiais este ano para os mais diferentes cargos: do legislativo ao executivo. Crescimento de 21% em relação às eleições de 2016. Se levarmos em consideração apenas as capitais, aumento real de 53%. Tem candidato comandante, coronel, delegado, sargento… Dos mais 6.700 candidatos, 41% são militares, 77% estão em partidos de extrema-direita, direita e centro-direita.

Em João Pessoa, por exemplo, tem dois militares como candidatos a vice-prefeito, e um delegado civil na disputa pela prefeitura. Eles integram um grupo que cresceu 22,4% em relação ao pleito de 2016. O PSL, sozinho, registrou 810 aspirantes das forças de segurança à vereança, prefeitura e vice-prefeitura. O Republicanos, 457; e o PSD lançou 455 policiais e militares como candidatos.

Como se vê, na capital paraibana e no resto do país, a maioria dos candidatos das forças de segurança se identifica e escolhe partidos alinhados com posições conservadoras  nos costumes, mas liberais na economia, defendendo, portanto o Estado mínino. A pesquisa  “Da polícia à política: explicando o perfil dos candidatos das Forças Repressivas de Estado à Câmara dos Deputados” (2016) já havia captado esse movimento que a Justiça Eleitoral nos confirma agora. Sim, são são personagens distintos dos candidatos que disputam as eleições 2010, mas os números apontam  uma tendência, ou, se preferir, uma preferência partidária dos agentes de segurança.

Essa curva ascendente tem relação com o bolsonarismo que é anterior a Bolsonaro e “não é um fenômeno apenas brasileiro. Insere-se em um contexto internacional de reação a mutações percebidas como ameaças mortais a tradições, valores e costumes”.[1]  No Brasil militares sempre estiveram presentes desde o Império de D.Pedro I, em 1822. Mais tarde atuaram, inclusive, como poder político e moderador para “salvar a República dela mesma quando houvesse conflito entre as oligarquias dominantes”.[2] No entanto, o que se observa na atualidade é diferente. Em nenhum outro período da história brasileira houve tantos militares – da ativa e da reserva – em um governo. São 6.157 de acordo com o Tribunal de Contas da União. Em 2016, eram 2.957. Em 2019, 3.515.

E qual o problema? O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, responde: “acho ruim e preocupante você começar a povoar cargos no governo com militares. (…) Quando você multiplica militares no governo, eles começam a se identificar como governo e começam a se identificar com vantagens e com privilégios. E isso é um desastre”.[3]

Octávio Amorim Neto, cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV), também aborda o tema. Ele resume o número de militares no governo Bolsonaro como uma “ambiguidade enorme em relação ao lugar das Forças Armadas” (…) “Não é boa para a democracia porque erode o controle civil sobre os militares”. [4] Ele propõe um debate amplo sobre o papel das forças armadas que deve ser circunscrito à defesa nacional.

Estendo essa lógica para as demais forças de segurança e pergunto: se até 2010 as candidaturas de militares e policiais eram modestas, o que mais as teria motivado? Há, indubitavelmente, um problema maior por trás do bolsonarismo. Longe de ser a causa, o bolsonarismo está mais para produto de uma crise sistêmica que passa pelo apuro da própria democracia. E nas crises, brechas importantes se abrem. A demanda social crescente por segurança pública e pelo combate à criminalidade atuou como fertilizante nesse processo. Policiais, bombeiros, militares souberam captar a mensagem. Essa compreensão, convertida em números, se reflete também na participação expressiva desses atores no processo político/eleitoral.

Mas há outro elemento a considerar. O professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba, Augusto Teixeira, explica que “após a redemocratização, nós tivemos o desenvolvimento de um centro, uma centro esquerda que se fez representar e governou o país, mas tivemos sempre uma fragilidade de termos direitas ideológicas que pudessem ofertar ao eleitor opções distintas daquelas da esquerda. O que ocorre nos últimos dez anos, não apenas com a eleição de 2018, é a abertura no espectro político de opções mais à direita. E um dos temas que as esquerdas em geral sempre tiveram dificuldade de trabalhar em termos resolutos é a questão da segurança pública (…), esses partidos de direita que emergem e se identificam como direita têm nessa pauta um elemento fundamental”.[5]

Esse, sim, um fato novo e, a partir dele, voltamos ao início da discussão. De acordo com o que foi exposto, essas transformações emergem de um sistema que pouco tem respondido às demandas sociais e, por isso, encontra ressonância na população. “Com a entrada na cena política da temática da segurança pública como uma commoditie política, ou seja, algo que as pessoas compram eleitoralmente (e as eleições de 2018 deixaram isso muito claro), o perfil de candidatos militares estaduais e federais ganhou um protagonismo muito grande para além das questões corporativas que era o ponto de pauta central dessas categorias em sua representação política formal”, afirma Teixeira. E ele continua: “a partir do momento em que a política começa a permear o corpo dessas instituições policiais e militares, há o risco de (a política) entrar nos quartéis, de a política entrar nas delegacias, e aí você tem o problema para o bom funcionamento não apenas das instituições, mas para a própria democracia. É aquele velho dilema que a teoria democrática coloca: em última instância quem contrololará aqueles que nos controlam?”.

Como resolver esse dilema? Como ampliar a participação dessas categorias na política partidária sem o uso político das forças de segurança? Teixeira acredita que a saída está na mudança na legislação: “é importante que avance no parlamento a regulamentação da participação política dessas categorias que são especiais, devem ser representadas, (…) mas não como policiais, não como militares, mas como civis que se façam representar com legitimidade”, diz ele.

Na inexistência de uma legislação clara, o que se vê é, claramente, a participação de agentes de segurança pública usando os espólios da atividade em que atuam como ferramenta de captação de voto em campanhas eleitorais. Ou seja, há grupos que se comportam como partido político. Esses candidatos, tal qual empresários que se arvoram na política partidária com a bandeira anticorrpção, procuram alimentar a narrativa da antipolítica para debilitar ainda mais os políticos e partidos tradicionais. Prova de que não há vácuo na política!

Todavia, quando pautas como corrupção e criminalidade viram o centro das atenções e das necessidades da sociedade vencida por promessas que nunca se cumpriram, um grande número de eleitores pende para um dos lados da balança ideológica. Rola um processo de identicação fermentando pelo cansaço e pela desconfiança nos candidatos tradicionais. Isso os leva a votar em partidos e candidatos situados à direita até o polo mais extremo dessa linha. Uma coisa alimenta a outra.

É o preço do desequilíbrio. Quando as instituições democráticas entram em crise, as instituições de repressão avançam porque encontram oportunidade e condições para isso. Os dados registrados no TSE estão aí para confirmar essa história.

 

[1] AARÃO REIS, Daniel. Ascensão e caráter do bolsonarismo. Novembro, 2019.

[2] ROCHA, Loryel. A história se repete: a mais nova estaa da militarização política brasileira. Dezembro, 2018.

[3] Entrevista ao G1. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml

[4] Entrevista à Isto é Dinheiro. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/presenca-de-militares-no-governo-torna-politica-menos-transparente/

[5] Entrevista concedida à colunista deste Blog e disponível em https://www.facebook.com/TVManairaOficial/videos/376989493731931