Opinião

Racismo e necropolítica: a política da morte tem cor e endereço

Pesquisa recente do Instituto Locomotiva a pedido da CUFA, Central Única das Favelas, mostrou ‘As faces do racismo no Brasil’.  Foram ouvidas por telefone 1.459 pessoas, dos 16 aos 69 anos, das classes A, B, C, D e E, em 72 cidades de todos os estados. Com margem de erro de 3 pontos percentuais para mais ou para menos, a pesquisa trouxe dados que nos ajudam a compreender o problema da desigualdade no Brasil.

Primeiro ponto: apenas 29% dos negros entrevistados disseram que tinham algum dinheiro guardado no início da pandemia da Covid-19, em março. Quando o assunto é valorização no mercado de trabalho, a pesquisa mostrou que brancos ganham em média 76% a mais que negros, com mesma idade e competências semelhantes. É a cor da pele que muda tudo, e o levantamento mostra que a população compreende isso.  Sabe que há racismo e que ele é estrutural porque está fortemente arraigado a práticas históricas, culturais, institucionais..

Por exemplo, 94% dos entrevistados disseram que o negro têm uma chance maior de ser abordado de forma violenta pela polícia. E esse ponto merece atenção porque há aí um relação íntima com a política de segurança, ou com a necropolítica, a política da morte – aquela que naturaliza a violência, que usa a força do Estado de forma ilegítima e extermina. Quem está na mira? O IBGE identificou, trouxe números: as vítimas, em sua maioria, têm cor e endereço.

Negros têm quase três vezes mais chances de morrer que brancos. De 2012 a 2017, 255 mil negros foram assassinados no Brasil. E onde estão? Na periferia, nas comunidades, onde o Estado têm o arbítrio como regra e age com licença pra matar. Presume-se a culpa e isso basta.  No Brasil de fato, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. A letra da canção é espelho da realidade, de um país que sangra por igualdade e clama por justiça. E aí entra o papel do Estado.

Sem inteligência, as políticas de segurança falham, e falham feio. Os números são a verdade factual. Não há como negá-los. O problema é que o Estado não tem que matar. Essa não é uma função do Estado apesar de este deter o uso legal da força. A função do Estado é cuidar, e promover uma “sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Esse é o texto da Constituição, são princípios fundamentais da República e o dever de um regime democrático. Mas aí, quando tais atribuições são negligenciadas, quando o Estado assume o papel de carrasco (ou de capitão do mato), tudo não passa de letra morta e de estado de exceção.

O dia da Consciência Negra marca a luta pelo enfrentamento ao racismo que se mostra nos fatos mais corriqueiros, e nos mais escandalosos também. De 2016 a 2018, de acordo com a Secretaria de Inspeção ao Trabalho, do Ministério da Economia, 82% dos 2,570 mil trabalhadores resgatados de trabalho escravo no Brasil eram negros. O acesso ao ensino superior de negros e pardos pela primeira vez na história superou a taxa de alunos brancos matriculados (IBGE), mas, ainda assim, mais da metade dos trabalhadores negros no país têm apenas o fundamental incompleto (56%). Os negros e pardos também são maioria entre os desocupados (64%) e entre os que estão na informalidade (66,1%). É o que aponta a pesquisa  “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE. Ver pesquisa: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf

Não há democracia racial no Brasil, e toda essa desigualdade naturalizada reforça o racismo diário e invisibiliza negros, pardos, quilombolas, indígenas…  Esse processo, que leva à  marginalização dessa população, à cultura da morte e do encarceramento, é uma nova forma de escravidão. Separa. Segrega. Mata. O caminho para mudar esse quadro passa pelo uso dos instrumentos do Estado no combate à discriminação racial e pela implementação de políticas sociais que promovam equidade, que respeitem a diversidade étnica, racial, de gênero etc. Mas, além disso, é preciso que essas pautas sejam abraçadas também pela sociedade porque não existe mudança, conquistas e progresso sem luta social.