Opinião

Mil dias sem Marielle Franco: um golpe na democracia

Não existe democracia sem diálogo. O cientista político David Ruciman diz que “democracia é  guerra civil sem o combate armado”. O diálogo é seu principal instrumento. Se falta diálogo, se vozes são silenciadas, não temos uma democracia. Não aquela substantativa, que faz diferença na vida das pessoas. Temos o que alguns autores como Adam Przeworski chamam de democracia minimalista, que existe como procedimento apenas e que não é capaz de promover justiça social nem de combater desigualdades e ilegalidades.

E nossa democracia está em crise? O assassinato de Marielle Franco (PSOL), há exatos mil dias, nos responde. Com a morte da vereadora carioca, morreu também um pouco da nossa democracia. Quando se passam quase 3 anos da execução de uma representante parlamentar eleita pelo voto popular e em pleno exercício do mandato sem que os mandantes sejam identificados, a democracia sai combalida. Quando o contraditório é censurado; quando críticas são rechaçadas; quando o conhecimento é questionado e a ciência é atacada; quando diferentes sujeitos são tolhidos do direito de se expressar, matam também a democracia.

Por que silenciaram Marielle? Ela foi morta porque incomodava um sistema de poder corrompido? Mulher preta, mãe, da periferia e LGBT, Marielle era geniosa, não baixava a cabeça, não se rendia aos que queriam tirar dela seu lugar de fala, seu direito de luta… Terá morrido porque questionou, denunciou e não se calou diante da violência política, policial, das milícias?  Morreu por que, ao tempo que era ameaçada também representava, em si mesma, uma ameaça? Quais as motivações do crime?

Mil dias sem respostas. Daquele 14 de março de 2018 pra cá, nenhuma solução. Prenderam executores um ano depois, em março de 2019. Um deles, o policial reformado Ronnie Lessa, 48 anos, morava em condomínio de luxo do Rio de Janeiro. O mesmo condomínio, aliás, do presidente Jair Bolsonaro. O lugar era incompatível com a renda de Lessa. Isso reforçou a tese de que ele era mero pau mandado. Fica a pergunta: quem mandou matar Marielle?

No Brasil, estudo do Instituto Sou da Paz revela que 70% dos inquéritos de assassinatos ficam sem desfecho. Significa que sete em cada dez assassinos permanecem impunes. Marielle entrou nessa lista, mas não virou só estatística. A morte dela deu causa a uma grande batalha por justiça e contra a impunidade. Mataram o corpo, mas não acabaram com a causa. Há protestos. Há cobrança.  Isso porque Marielle era produto das massas. Era a voz das massas. E por mais que a organização popular tenha sido criminalizada no Brasil, Marielle soube furar bloqueios e plantou sementes. Contou com o apoio de 46 mil pessoas. Foi a quinta candidata mais votada do Rio e a segunda mulher mais votada para o parlamento municipal em todo o país. Era um ponto fora da curva. Pensava e ajudava a pensar. Os números não mentem. Nem os fatos. Quando assassinaram Marielle, tiraram de todos aqueles que nela votaram a capacidade de se fazer representar, de se fazer ouvir. Três tiros na cabeça e um no pescoço da jovem mulher de 38 anos silenciaram também outros milhares: jovens, idosos, negros, pardos, brancos, pobres… Todos órfãos da vereadora que ousou enxergar os que são continuamente invisibilizados todos os dias, e massacrados pelo mesmo sistema que Marielle peitou.

A morte de Marielle Franco é sintoma de uma democracia que anda sobrecarregada como todo corpo quando um de seus órgãos entra em colapso: os sistemas não funcionam bem, não são capazes de dar uma resposta à sociedade, há recrudescimento das forças conservadoras. Se percebe, no entanto – e este 08 de dezembro mostrou isso -, que há, ainda, capacidade de reação e, com ela, esperança de dias melhores. O caminho passa pela mobilização. Era o que dizia e fazia Marielle em vida. A organização coletiva é a força condutora contra a tirania, e disso depende a democracia.