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Pré-condição para democracia, jornalistas recebem prêmio Nobel da Paz

O prêmio Nobel da Paz de 2021 é concedido aos jornalistas Maria Ressa (Filipinas) e Dmitry Andreyevich Muratov (Rússia) “pelo esforço para proteger a liberdade de expressão, o que é uma pré-condição para democracia”.

“Eles são representantes de todos os jornalistas que defendem este ideal em um mundo em que a democracia e a liberdade de imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas”, disse o Comitê do Nobel.

A escolha é, portanto, uma resposta contra a desinformação e repressão contra a liberdade de expressão, estratégia que passou a ser usada de forma deliberada por líderes populistas e que, na avaliação dos organizadores do prêmio, ameaça a paz, as democracias e a estabilidade das sociedades.

“O jornalismo livre, independente e baseado em fatos serve para proteger contra abusos de poder, mentiras e propaganda de guerra”, destaca o Nobel. “O Comitê está convencido de que a liberdade de expressão e a liberdade de informação ajudam a garantir um público informado. Estes direitos são pré-requisitos cruciais para a democracia e proteção contra a guerra e os conflitos”, afirma.

“A atribuição do Prêmio Nobel da Paz a Maria Ressa e Dmitry Muratov tem o objetivo de ressaltar a importância de proteger e defender estes direitos fundamentais”, destaca.

“Sem liberdade de expressão e liberdade de imprensa, será difícil promover com sucesso a fraternidade entre as nações, o desarmamento e uma ordem mundial melhor para ter sucesso em nosso tempo. A atribuição deste ano do Prêmio Nobel da Paz está, portanto, firmemente ancorada nas disposições da vontade de Alfred Nobel”, argumentam os organizadores do prêmio.

Oslo, assim, manda uma mensagem implícita a personalidades como Jair Bolsonaro, Vladimir Putin, Rodrigo Duterte ou Donald Trump sobre a importância da imprensa para a preservação do sistema democrático. Eles colocaram o jornalismo como inimigo, adotaram medidas para minar a credibilidade da imprensa, esvaziar a capacidade de atuação dos meios e estabeleceram canais próprios para poder divulgar suas mensagens, sem serem questionados.

A liberdade de imprensa e a capacidade de questionar a autoridade, afirma Oslo, é agora mais importante do que nunca, principalmente diante das ameaças que democracias enfrentam em diferentes partes do planeta.

Para os organizadores, jornalistas estão colocando sua própria segurança em risco para fornecer informações sobre os conflitos mais devastadores e regimes repressivos, além de sair em defesa da democracia.

O prêmio ainda envia um sinal sobre a importância do jornalismo independente, sobretudo em regimes repressivos e autoritários como China, Arábia Saudita e Belarus, além da própria situação na Rússia, em Mianmar ou na Turquia.

De acordo com a ONU, mais de mil jornalistas foram assassinados na última década. De cada dez anos, nove permaneceram impunes.

O Brasil tem sido alvo de questionamentos por parte de entidades internacionais por conta da situação da imprensa. A organização Artigo 19, por exemplo, apresentou um levantamento em que indica que 449 ataques foram realizados contra jornalistas nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro por parte do presidente, seus aliados e filhos.

Levantamentos também revelaram que, em seu primeiro ano de governo, Bolsonaro deu uma declaração falsa a cada quatro dias.

De fato, o prêmio é também um recado de apoio ao combate contra a desinformação. Estudos e levantamentos realizados em diferentes partes do mundo indicaram como o uso desse instrumento passou a ser decisivo em eleições, manipulando massas e criando tensão social.

O prêmio, assim, enfatiza a importância de fornecer informações confiáveis para permitir que cidadãos possam ter acesso às decisões dos governos e garantir que as autoridades sejam devidamente fiscalizadas.

A pandemia também explicitou a questão da desinformação. A OMS constatou que, nas redes sociais, 40% dos posts sobre a crise sanitária eram realizadas por robôs, com um elevado número de casos de disseminação de teorias de conspiração e ataques contra a ciência. Dados ainda revelaram que uma fake news circula seis vezes mais rápido que uma notícia da imprensa tradicional.

A desinformação não é uma novidade. Governos mantiveram por décadas operações de enormes proporções para censurar e manipular a opinião pública. Desta vez, seus artífices possuem um enorme arsenal tecnológico, com um poder inimaginável há apenas poucos anos.

No século 21, essas informações fabricadas de forma deliberada vieram seguidas por um ataque diário contra os meios de comunicação, numa estratégia orquestrada de deslegitimar qualquer questionamento.

Constrói-se a legitimidade de canais paralelos da realidade, enquanto pilares da democracia são abalados. A mentira, portanto, passa a ser um instrumento de poder.

Para ativistas, portanto, a luta contra a desinformação certamente passa por uma questão de tecnologia e de Justiça. Mas o uso deliberado da angústia de uma população e o grau de aceitação de tais “notícias” devem servir de alerta para que se compreenda a dimensão dos problemas que se enfrenta.

Na avaliação dos organizadores do prêmio, o antídoto também inclui fortalecer a imprensa.

Ao apresentar o prêmio, a presidente do Comitê do Nobel, Berit Reiss-Anderson, lembrou que a liberdade de imprensa é “requisito para uma sociedade democrática”. “E o nosso entendimento é que democracias evitam guerras e é a melhor defesa de uma sociedade contra conflitos”, declarou. “Não há democracia, nem frágil ou avançada, sem liberdade de expressão”, disse.

Para o Nobel, essa é a primeira vez qze o prêmio vai para um aspecto específico do direito internacional, que é a liberdade de expressão. Em 1907 e 1935, outros dois jornalistas foram premiados. Mas por seu ativismo pela paz.

“O jornalismo fundamental para democracia”, disse a representante. “A ironia é que, no mundo de hoje, temos mais informação que jamais obtivemos. Mas, ao mesmo tempo, temos abuso e manipulação, como Fake News”, alertou.

Para o Nobel, a desinformação e a propaganda são “violações” à liberdade de imprensa e lembra como Ressa é crítica contra o Facebook por “manipular o debate público”.

Quem são os vencedores :

De acordo com Oslo, “Maria Ressa usa a liberdade de expressão para expor o abuso de poder, o uso da violência e o crescente autoritarismo em seu país natal, as Filipinas”.

“Em 2012, ela co-fundou a Rappler, uma empresa de mídia digital para o jornalismo investigativo, que ela ainda dirige”, explicou.

“Como jornalista e diretora executiva da Rappler, Ressa demonstrou ser uma defensora destemida da liberdade de expressão. Rappler tem focado a atenção crítica na controversa e assassina campanha antidrogas do regime de Duterte. O número de mortes é tão alto que a campanha se assemelha a uma guerra travada contra a própria população do país. Ressa e Rappler também documentaram como a mídia social está sendo usada para espalhar notícias falsas, assediar adversários e manipular o discurso público”, destacou o Nobel.

Já Dmitry Andreyevich Muratov tem defendido durante décadas a liberdade de expressão na Rússia sob condições cada vez mais difíceis.

“Em 1993, ele foi um dos fundadores do jornal independente Novaja Gazeta. Desde 1995, ele tem sido o editor-chefe do jornal por um total de 24 anos. O Novaja Gazeta é hoje o jornal mais independente da Rússia, com uma atitude fundamentalmente crítica em relação ao poder”, diz o Nobel.

“O jornalismo baseado em fatos e a integridade profissional do jornal fizeram dele uma importante fonte de informação sobre aspectos censuráveis da sociedade russa raramente mencionados por outros meios de comunicação. Desde sua criação em 1993, o Novaja Gazeta publicou artigos críticos sobre temas que vão desde corrupção, violência policial, prisões ilegais, fraude eleitoral e “fábricas de troll” até o uso de forças militares russas dentro e fora da Rússia”, disse.

“Os opositores do Novaja Gazeta responderam com assédio, ameaças, violência e assassinato. Desde o início do jornal, seis de seus jornalistas foram mortos, incluindo Anna Politkovskaja, que escreveu artigos reveladores sobre a guerra na Chechênia. Apesar dos assassinatos e ameaças, o editor-chefe Muratov recusou-se a abandonar a política independente do jornal. Ele tem defendido consistentemente o direito dos jornalistas de escrever o que quiserem sobre o que quiserem, desde que eles cumpram os padrões profissionais e éticos do jornalismo”, completou.

Texto reproduzido de Jamil Chade, colunista de UOL,  correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra.