Troca de tiros entre facções rivais no Vista Alegre espalha medo entre moradores e expõe falhas da política habitacional no país
Uma rajada de tiros seguida, imediatamente, de outras tão intensas quanto a primeira. Ouça:
O áudio revela mais uma das noites de terror vividas pelos moradores do Residencial Vista Alegre, no Colinas do Sul, em João Pessoa. O conjunto é novo e voltado para famílias de baixa renda. Tem 2.016 unidades, 192 delas entregues há menos de um mês pela Prefeitura com a presença do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
“Morar aqui, ter casa própria era pra ser um sonho realizado, mas virou um pesadelo”, diz um homem que prefere não se identificar. Isso porque a violência é uma marca do território disputado por facções rivais. “Não há um dia de sossego”, completa. O medo é generalizado. Medo de sair na rua, de denunciar e ser expulso pelos traficantes e perder o imóvel… Medo de ser morto.
Procurada pelo Blog, a secretária de Habitação da capital, Socorro Gadelha, responsável por monitorar a pós-ocupação no Residencial, disse que o problema do Vista Alegre “está debelado”. Ela tem buscado soluções para a violência local com Guarda Municipal (GM) e Polícia Militar (PM). Mas não é tão simples. A GM tem atuação limitada. Ainda assim, reforçou as rondas diárias na área: “Infelizmente, no contexto atual, podemos muito pouco. Pra você ter ideia, temos 7 viaturas pra toda João Pessoa. Pra esse ano, esperamos a chegada de mais 10 viaturas”, revelou João Almeida, secretário de Segurança Urbana e Cidadania da capital.
De acordo com o Comandante da Polícia Militar, Cel. Euller Chaves, há uma luta do crime organizado por mais espaço no Nordeste e o tiroteio no Vista Alegre é resultado da concorrência entre facções pra ampliação dos pontos de droga . “Estamos monitorando e saturando a área desde ontem com tropas especiais”, disse. Saturar, explicou ele, significa “ocupar os espaços com mais força e presença”. A quantidade de policiais na operação não foi revelada, tampouco as estratégias de combate a médio e longo prazo.
O crime organizado e o “efeito balão”
A presença do crime organizado no Vista Alegre é produto de uma série de fatores e não é um caso isolado. O conjunto tem infraestrutura completa: água, esgoto, energia elétrica, pavimentação, iluminação pública e drenagem. Mas falta algo básico: a presença de um estado forte, o que compromete o combate à criminalidade. É o que revela o pesquisador Jamieson Simões, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo ele, a criminalidade aumenta onde a atuação do poder público é fraca. O fenômeno é conhecido como ‘efeito balão’: “dentro do balão, quando a pressão aumenta em um ponto, o fluxo de ar se move para áreas de menor resistência. É esse o comportamento que as facções fazem”, explicou.
Política Habitacional falha
Apesar dos avanços na democratização do acesso à habitação, muitas das ações não acompanham as dinâmicas das comunidades nem sua complexidade. Os problemas que surgem em condomínios habitacionais populares mostram que não basta só reduzir o déficit habitacional, mas proporcionar condições de habitabilidade que garantam segurança e bem-estar aos moradores.
O Procurador da República José Godoy expõe falhas da política habitacional do país: “0 problema com o Programa de moradia como um todo, que começa de uma forma estrutural com o “Programa Minha Casa, Minha Vida” através dos PACs (Programa de Aceleração do Crescimento), é que falta de disposição do estado de gerir a questão da moradia e de tratá-la mais como um bem público do que como propriedade privada. Há uma questão estrutural muito grave que é o fato de ter entregue elas (as moradias) às construtoras, e elas buscaram fazer os conjuntos residenciais os mais distante possível dos locais de trabalho das pessoas para ter lucro. Isso traz um problema enorme. Você chega à moradia mas para aquele lugar não chegou transporte público, educação com qualidade, o sistema de saúde não funciona a contento. E tem o problema da segurança. Talvez este tenha sido o maior problema de todos os residenciais populares do Brasil: locais distantes, policiamento falho e quase todos eles estão sendo dominados por facções. São centenas, milhares de famílias sob o domínio de facções criminosas, sejam milícias ou traficantes. Isso traz o problema da violência, ou ela está eclodindo, como tem acontecido na periferia de João Pessoa, ou está em aparente calmaria decorrente de um domínio, de uma violência velada”.
E há outros retrocessos como a extinção do Ministério das Cidades em 2019, e o desmonte do Plano Nacional de Habitação, criado em 2011. Embora o ‘Programa Minha Casa, Minha Vida’ esteja ativo, as famílias de baixa renda acabaram atingidas pelos cortes de investimentos na área: “nós assistimos, desde o governo Temer, uma mudança no perfil. Isso aconteceu já nas décadas de 70, 80 nos Estados Unidos e agora está acontecendo no Brasil, onde os recursos para o setor imobiliário têm sido retirados da habitação popular e estão sendo destinados para financiamento de moradia da classe média alta. Essas classes têm mais poder político e com isso conseguem cooptar setores do governo para que os investimentos sejam destinados a ele. O que se vê agora em termos de construção de moradia popular ainda é remanescente de governos anteriores. Essa é a principal crítica que temos: (o governo) não atendeu a expectativa que se tinha que é moradia com qualidade de vida e acabou gerando muito lucro para as construtoras e baixa qualidade de vida para a população beneficiada. É lamentável se gastar tanto com um Programa tão importante e ele não atingir o que esperava”, completou Godoy.