Opinião

Racismo, selvageria e tropicália – Imigrante congolês espancado até a morte no Rio é vítima de uma guerra civil tropicalista

​Moïse Mugenyi Kabagambe, imigrante congolês de 25 anos, morava no Brasil. Sorridente e prestativo, trabalhava na beira da praia, em um quiosque chamado Tropicália. Na manhã do dia 24 de janeiro, foi cobrar do dono, brasileiro, salários atrasados. Foi, então, espancado até à morte por 5 conhecidos do patrão, que usaram pedaços de pau e tacos de beisebol por 15 minutos. Depois de morto, o corpo foi amarrado e deixado ali, sob o sol. O dia estava bonito. O sol nas bancas de revista. A vida continuou.
Passaram pelo corpo de Moïse, um imigrante legal, com lenço e com documento, brasileiros fazendo sua corrida diária, ouvindo em fones do ouvido o último sucesso do spotify. Passou aquele senhor executivo que religiosamente toma sua água de coco geladinha, olha pro mar, e pensa como é boa a vida no Brasil. Passaram também as meninas em direção ao Quebra-mar, onde vão fazer yoga, ficar em paz consigo mesmas e acariciar os gatinhos da região. Passou a turma do futevôlei, milicianos que dão aquela suada boa antes de entrar para o batente da vida.
O Brasil também pouco se deu conta do corpo do jovem congolês no chão, decompondo sob o sol tropical. É tanta crise na Ucrânia, tanto paredão do BBB, é tanto Chico Buarque e Nara Leão que não dá tempo de acompanhar tudo.
Quem lê tanta notícia?
Tropicália é o nome do Quiosque onde um corpo humano foi espancado e deixado no chão morto por horas enquanto o brasileiro vivia a sua vida.
Vivemos no país mais racista da América do Sul, da América do Sul, da América do Sul, você precisa saber de mim. Baby, i love you.
Moïse e sua família, em sua inocência, amavam essa ficção chamado Brasil tropicalista.
Agora, imploram para que alguém dê atenção ao caso deles que teria parado o país se tivesse ocorrido com, por exemplo, um imigrante sueco.
As autoridades ficaram de investigar. Embora o nome do dono do quiosque Tropicália eles já saibam, e tenham até na mão todo o video do espancamento de 15 minutos. Com evidências na mão, ficaram ainda de investigar. Com base eleitoral na Zona Oeste, o governador carioca também foi mais um que passou por cima do cadáver do imigrante do Congo.
Nas redes sociais, designers independentes já desenharam, em seus home offices com ar-condicionado claro, algumas logos que dizem “Justiça para Moïse Mugenyi Kabagambe”.
Essa guerra nunca será vencida com hashtags.
E se houver a tal da justiça? Se forem presos e condenados todos os responsáveis? O que isso muda? Deixaremos de ser racistas e violentíssimos especialmente com imigrantes de pele preta?
Quanto tempo irá demorar para voltarmos a cantar, felizes e orgulhosos, “viva a mata-ta-tá, viva a mulata-ta-ta-tá”, cheios de esperança nesse país tropicalista, abençoado por Deus e bonito por natureza, como se nele nunca um jovem congolês tivesse sido espancado até a morte na beira da praia, do sol, rodeado das pessoas da cerveja, do pagode, do sal, do windsurf, da meditação e do crossfit enquanto nos preocupamos com a segurança da população de Kiev?
Qualquer país justo já estaria em chamas, revoltado com o crime. Se, na verdade, já não estivéssemos em chamas, só que fogo que apenas queima a carne de determinada cor e classe social.
Éramos para estar em guerra civil. Mas, na verdade, já estamos, e Moïse Mugenyi Kabagambe é mais uma vítima.
Era para o exército do Congo ter invadido esse Brasil deboísta-miliciano .
O que fez, foi nos invadir com cultura. Séculos atrás, o Congo nos deu tudo, porque nos deu o samba.
Nós retribuímos com Tropicália.

Por Dodô Azevedo, colunista Folha de São Paulo