Política com pimenta

“O bode expiatório, hoje, é o Supremo”, declara Gilmar Mendes

O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, completou 20 anos na Corte. Em entrevista ao Correio Brasiliense, neste domingo (26), Mendes defendeu o inquérito das fake news; passou a Lava-Jato a limpo, afirmando que a Operação tinha um viés político e autoritário, produzindo efeitos nefastos para o Judiciário e a política no país; falou sobre os ataques ao Supremo e disse com todas as letras que não há ameaça ao processo eleitoral.

Confira a entrevista na íntegra:

O que o senhor coloca como o melhor e o pior momento nesses 20 anos de STF?
Chego aqui em junho de 2002, e o tribunal já estava numa transição, porque, até então, era composto por muitas pessoas que foram indicadas ainda no regime anterior, antes da Constituição de 1988. Então, essa fase, a partir de 2000, já até com alguns novos indicados — ministro (Nelson) Jobim, ministra Ellen Gracie —, é, talvez, uma fase em que se começa a aplicar de maneira mais aberta o modelo da Constituição de 88.

Nascia um novo Supremo?
É um momento de florescimento do tribunal, no sentido de construção de garantias. É também uma fase de mudança de jurisprudência, que é um momento interessante. Depois, vamos viver os embates sobre o recebimento da denúncia e o próprio debate a respeito do mensalão. Ali, é um ponto alto. Até de reconhecimento popular do prestígio do tribunal.

E os piores momentos?
Certamente, essa ambiência em torno da Lava-Jato, dessa onda de punitivismo, que vai nos expor, expor as divisões do tribunal, e, certamente, aí temos erros e acertos. E o tribunal, ou muitos de nós, eu incluído, obviamente, vamos ser vítimas de ataques e estar submetidos a uma série de vilipêndios. São momentos bastante difíceis.

Há uma relação entre a Lava-Jato e os ataques ao Supremo?
Talvez estejam associados. O tribunal que teve seu momento de altaneria, no pós-mensalão, agora passa a viver um outro quadro, passa a ser questionado. Aí, tem todos aqueles episódios de ataques a juízes, constrangimentos em avião, e coisas do tipo. Portanto, as pessoas se animaram a…

…Foram estimuladas…
Foram estimuladas. Não podemos esquecer que (Sergio) Moro vem integrar o governo Bolsonaro como ministro da Justiça e, em dado momento, foi considerado o mais popular ministro do governo Bolsonaro. E, aí, a gente vive, desde 2019, aquele quadro de manifestações, de “eu autorizo, eu delego”. O que significava isso? Eu autorizo que feche o Supremo, esquecendo-se de que democracia constitucional é uma democracia com limites. O tribunal soube articular bem a defesa nessa matéria, com a abertura do tal inquérito, que se popularizou como o inquérito das fake news, ou dos atos antidemocráticos, que produziu um esvaziamento. Mas, vivíamos, todos os domingos, em 2020, as manifestações, aquelas cenas, o espocar de fogo sobre o Supremo Tribunal Federal, de caráter simbólico, mas, daqui a pouco, poderia haver tiros.

E isso teve desdobramentos.
Sim. No ano passado, o7 de Setembro, são todos movimentos aos quais não estávamos acostumados. Críticas, sempre houve ao tribunal. A jurisdição constitucional decide com um caráter quase que legislativo. As decisões acabam tendo um amplo efeito, elas dividem, porque alguns aprovam a decisão e outros criticam. No momento em que a gente vive essa radicalização, e, muitas vezes, a simplificação de determinadas realidades…

Pode dar um exemplo?
Vamos pegar um fato que a toda hora se levanta: o reconhecimento da união homoafetiva. Em princípio, uma decisão normal do tribunal, muito bem recebida em vários ambientes. Só que, nas redes, isso pode ser trazido como se fosse uma licenciosidade, uma permissividade, a ruptura com os valores mais altos da família. Então, o mesmo fenômeno pode ser visto como uma decisão libertária, de reconhecimento, como me parece que é, mas é visto, também, nessa outra perspectiva, como se estivéssemos estimulando a ruptura da família. Compreende-se, então, que qualquer decisão seja demonizada, satanizada.

E estamos falando apenas de um tema.
Em matéria penal se diz: a polícia prende, e o Supremo solta. Não é nada disso. Quem prende é o Judiciário, que é quem ordena a prisão no nosso sistema. A polícia cumpre. No contexto das redes, dizem: dois, três juízes decidiram num sentido, e, agora, vem o Supremo e decide no sentido contrário. Três a um, quatro a um, faz-se um raciocínio futebolístico, quando o Supremo é Supremo justamente por isso, porque decide por último e de maneira definitiva. Em suma, esse ambiente de conflagração fez com que nos víssemos envolvidos nessa polêmica imensa que se tentou responder com o inquérito das fake news.

O próprio inquérito também é muito criticado, especialmente pelos bolsonaristas, porque o STF acusa, investiga, julga, faz todo o processo dentro do STF. Não deveria ter havido uma distribuição maior dessas tarefas?
Acho que aqui se faz um pouco de confusão. Quando a gente tem casos que envolvem, por exemplo, parlamentares, casos típicos da prerrogativa de foro, normalmente a Procuradoria-Geral pede a abertura de inquérito, e nós abrimos. Desde então, cada relator preside o inquérito. Há casos em que decidimos não abrir porque não há razões suficientes. Quando abrimos, atuamos como uma autoridade supervisora. Quebramos sigilo, a pedido do Ministério Público; mandamos busca e apreensão e todas as medidas probatórias para que se dê densidade ao inquérito.

O que houve de especial no inquérito das fake news?
Entendeu-se que estávamos numa situação singular — e aí se focou muito no disposto do artigo 43 do Regimento Interno, que prevê que crimes cometidos no ambiente do tribunal possam ser investigados pelo tribunal. Mas os nossos inquéritos, esses que abrimos no contexto da prerrogativa de foro, já são presididos pelo Supremo. Só que, quando eles são encerrados, são mandados à Procuradoria, que oferece denúncia ou não. Pode pedir o arquivamento também. E, quando pede arquivamento, normalmente, a gente encerra.

E o que ocorre no inquérito das fake news?
Com base no artigo 43, e diante da peculiaridade de todo o quadro, abriu-se o inquérito por determinação do presidente do tribunal. Houve a designação do ministro Alexandre de Moraes como relator, e ele passou, como fazemos nos demais inquéritos, a fazer as investigações, com a Polícia Federal, com auxílio da Procuradoria-Geral. A procuradora Raquel (Dodge) — e isso talvez tenha ajudado a confundir e alimentar essa lenda urbana —, por cuidados institucionais e talvez até corporativos, repudiava o inquérito, pedia o arquivamento. Quando veio o procurador (Augusto) Aras, ele passou a reconhecer como válido o inquérito e passou a pedir providências. Agora, feitas as investigações, ao que estou informado, encerrado qualquer capítulo desse inquérito, é mandado para o Ministério Público para que ele ofereça a denúncia em relação às pessoas que foram investigadas. O Ministério Público está acompanhando.

Do ponto de vista formal, o processo está correto, então.
Todas as garantias estão sendo dadas. As mesmas garantias que existem para os inquéritos com prerrogativa de foro são dadas aqui, então, não é que o Supremo esteja acusando. O Supremo simplesmente faz o inquérito como faz nas outras hipóteses e, depois, encaminha para a autoridade competente, que vai oferecer a denúncia ou não. E se decidir não oferecer, assunto encerrado. Portanto, é um procedimento normal.

O Supremo tem, portanto, a prerrogativa de abrir e conduzir inquéritos.
Em relação ao inquérito das fake news, eu tenho segurança de que, não fosse a sua instauração e a postura firme do seu relator, o ministro Alexandre de Moraes, teríamos tido desdobramentos muito ruins, graves. Víamos, como se descobriu, financiamentos, empresários financiando, e isso passou a ter consequências. Organizações de milícias nesse contexto. Então, é preciso ter essa compreensão. É um instrumento importante de defesa da própria Corte em circunstâncias especiais.

O senhor é crítico contumaz da Lava-Jato. Era um projeto de poder?
É muito difícil dizer isso ab initio (desde o princípio). Mas, hoje, estou absolutamente convicto disso, de que havia um projeto de poder. Os senhores vão se lembrar, por exemplo, de Curitiba. Sem nenhum menoscabo, mas está longe de Curitiba ser o grande centro de liderança intelectual do Brasil. Não obstante, Curitiba passou a pautar-nos. Tinha normas que praticamente proibiam o habeas corpus. Normas tão radicais quanto a do AI-5. Proibição de liminares e coisas do tipo. A Lava-Jato era um projeto que ia para além das atividades meramente judiciais. E (os integrantes) passaram, também, a acumular recursos.

Como assim?
O ministro Teori (Zavascki) passou a glosar vários acordos que dizia que pagariam 20% para o Ministério Público. Passaram a pensar num fundo e chegaram àquela Fundação Dallagnol, a fundação que recebeu R$ 2,5 bilhões, uma fundação privada de direito público que se dedicaria a fazer educação contra a corrupção. R$ 2,5 bilhões correspondem a metade do Fundo Eleitoral previsto. Era um projeto, obviamente, político.

Houve outros episódios, mais graves.
Vieram as revelações da Vaza-Jato, um jogo combinado: denúncias que eram submetidas antes ao juiz. Aquilo saiu do status de maior operação de combate à corrupção para o maior escândalo judicial do mundo. Mais do que um projeto político, a Lava-Jato era um projeto político de viés totalitário: uso de prisão para obter delação e cobrança para que determinadas pessoas fossem delatadas.

Então, por que o STF chancelou quase todas as decisões de Moro, do TRF-4?
As primeiras discussões trataram das prisões. Vocês vão encontrar vários pronunciamentos meus, na 2ª Turma, dizendo que a gente tinha um encontro marcado com essas questões. Só que vários dos habeas corpus foram indeferidos, por decisão da Turma.

O STF errou lá ou errou depois? É muita diferença entre as decisões…
A avaliação que se fazia é de que se estava no início das investigações e que se justificavam as medidas. Estou tranquilo em relação a isso, porque fiquei vencido em vários casos.

Os problemas continuaram mesmo após o impeachment de Dilma Rousseff.
Em 2017, abre-se investigação em relação ao presidente Temer e a coisa da JBS e tudo mais. Tudo se faz a toque de caixa, e por quê? Porque estava em jogo a Procuradoria-Geral da República. Quem seria o escolhido. Fez-se quase um golpe contra o presidente da República por causa da disputa na Procuradoria-Geral. Sabia o dr. (Rodrigo) Janot que nem ele nem o candidato do grupo dele seria o escolhido pelo presidente Temer. Então, tomou a singela medida de derrubar o presidente. Isso não tem sido falado, mas é notório que foi assim. E, claro, condicionado à linha “só vamos fazer o acordo de leniência, delação, se vocês fizerem esse tipo de papel”. É disso que estamos falando. Que modelo é esse?!!

Acredita que tudo está dentro do contexto de criminalização da política?
Tenho impressão de que sim. Não estamos dizendo que não tem crime aqui, não é disso que se cuida. Caixa dois era comum. Mas foi se enquadrando tudo como corrupção.

O senhor afirma que houve crimes, mas muita gente está dizendo: “Já que a Lava-Jato foi para o sal, quero meu dinheiro de volta”. Se houve crime, houve roubo, o cara confessou que pagou propina, agora o Estado vai ter que devolver recurso?
Não acho que haverá esse tipo de decisão. Os casos têm de ser efetivamente aferidos num contexto específico, cada caso terá de ser examinado. É muito difícil explicar que um diretor da Petrobras tenha acumulado uma montanha de recursos e que isso não estivesse associado à corrupção. Cada caso terá de ser analisado em sua perspectiva. Mas as práticas da Lava-Jato não têm nada a ver com o Estado de direito, são práticas totalitárias. Se a gente tivesse falando da Rússia soviética, era o normal. Mas isso passou-se a fazer a aqui.

Como vê as ameaças e tensões que pairam sobre as eleições?
Eu já disse que, de alguma forma, a Lava-Jato é pai e mãe desta situação política a que chegamos. Na medida em que você elimina as forças políticas tradicionais, se dá ensejo ao surgimento — a política, como tudo no mundo, detesta vácuo — de novas forças. A Lava-Jato praticamente destruiu o sistema político brasileiro, os quadros representativos foram atingidos. O Brasil produziu uma situação muito estranha. Além de sede de poder, veja que todos hoje são candidatos. Moro é candidato, a mulher é candidata, Dallagnol é candidato.

Mas o senhor vê ameaças às eleições?
Não vejo. Desde 1996 temos votação eletrônica, e a votação eletrônica baniu a fraude sistêmica, a contabilização indevida de votos. Já passei duas vezes pela Justiça Eleitoral e tenho absoluta confiança no trabalho que se faz.

Por que esse ataque à urna eletrônica?
Para manter a grei unida. Não há dúvida sobre a seriedade do sistema. O Brasil pode ter vários problemas. Precisa melhorar, inclusive, o sistema político. Mas isso não tem nada a ver com a urna eletrônica. Desde o 7 de Setembro, o presidente fala, acusa, mas, até agora, não descumpriu nenhuma decisão judicial…
Não tenho conhecimento de nenhum descumprimento.

Esse discurso pode evoluir para a prática?
Não vou fazer considerações específicas, mas acho que, nesses movimentos de inspiração populista acaba ocorrendo um certo incômodo com a ideia de limitação dos Poderes, só que isso é típico da democracia constitucional. É uma democracia com limites, todos estamos submetidos a limites. Obviamente, precisa-se encontrar culpados, bodes expiatórios. E o bode expiatório visível, no contexto brasileiro, hoje, é o Supremo Tribunal Federal. Nós não temos um presidencialismo imperial. Quer mais limitação do que impõe ao presidente o próprio Congresso? Veja quantos vetos foram derrubados, quantas medidas provisórias foram rejeitadas. E o Congresso está abusando? Não, está exercendo suas funções.

Em que momento o STF, na sua avaliação, agiu corretamente e não cometeu excessos?
Veja a atuação do tribunal na pandemia. Eu reputo que foi uma atuação exemplar. Se olharmos o quadro de confusão que tínhamos em março de 2020… Nós não tínhamos vacina, não tínhamos remédios confiáveis, daí a lenda urbana da cloroquina. E há uma questão constitucional básica: o sistema de saúde deve ser um sistema integrado, que exige coordenação nacional e ramificações nos estados e municípios.

Era o caos.
O que aconteceu? A União dizendo que não podia haver interrupção de atividades, que todas eram essenciais. E vieram governadores e prefeitos reclamando, porque a única medida que lhes ocorria, seguindo orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), era fazer algum tipo de isolamento social, interrupção de atividades. E uma posição pragmática: eles gerenciavam o sistema de saúde. Havia uma regra que nem era médica, era estatística, de que um grupo se contaminaria e parte dessas pessoas precisaria de atendimento e de UTI.

Nesse contexto, o que fez o tribunal?
O Supremo fortaleceu a posição de estados e municípios que estavam defendendo uma recomendação médico-científica, e fomos acusados de estar atrapalhando a política governamental nessa seara. No fim, as pessoas não reparam, foi o Supremo, naquela confusão da guerra das vacinas, na gestão caótica do general (Eduardo) Pazuello, que estabeleceu o plano de imunização. Foi o ministro (Ricardo) Lewandowsky que estabeleceu que precisava ter um plano de imunização. Já tínhamos vacina, e estava aquele bate-cabeça. Veja o papel importante que o tribunal exerceu nesse contexto.

Vê risco de golpe de Estado?
Não vejo. O Brasil amadureceu muito. Somos 27 unidades federadas, temos 5,6 mil municípios, uma economia pujante, estamos inseridos no contexto internacional, somos uma democracia grande no mundo. Não faz sentido esse tipo de especulação.

Há pontes entre o presidente Bolsonaro e o Supremo?
Eu sou favorável a que todos nós tenhamos abertura e diálogo, inclusive para esclarecer determinadas coisas. Nesse ambiente, muitas vezes, as pessoas ficam suscetíveis a teorias conspiratórias. Teoria conspiratória se combate com boa informação. Por isso, a importância do trabalho da mídia profissional.

Após aquela tentativa de ameaçar a democracia, no 7 de Setembro, houve interlocução…
Nós estamos vivendo mais de 30 anos de normalidade institucional. De alguma forma, tem havido um mutirão, uma parceria institucional. A democracia é isso mesmo, um modelo de check and balances e de verificação, de construção de consenso, de algum consenso básico, de legitimação. Nós mesmos, aqui, muitas vezes, tomamos decisões que, depois, se verificaram erradas.

Por exemplo?
Hoje, eu reputo como extremamente problemática a decisão que tomamos de suprimir o financiamento privado (de campanhas eleitorais). Na medida em que tiramos o financiamento privado, subimos o financiamento público. Estamos chegando a R$ 4,9 bilhões nas eleições presidenciais. E com os partidos com uma massa enorme de recursos.

O que acha do projeto de lei que torna o Congresso uma espécie de instância revisora do Supremo?
A ideia nem é boa nem é nova. De alguma forma, há um dispositivo semelhante na Constituição de 1937, da ditadura Vargas, em que se previa que o Parlamento poderia, em caso de declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo, confirmar a lei que fora declarada inconstitucional e cassar a decisão do Supremo. Como não houve Parlamento em 37, isso foi exercido pelo presidente ditador. Portanto, a inspiração (do projeto) é de viés totalitário. Devemos ficar muito desconfiados em relação a isso. Imagine uma decisão tomada por 10 x 1 ou por 6 x 5. Por que ela deveria ser anulada? Não faz nenhum sentido. É tão extravagante que a gente pode dizer que nem errada está. (risos)