A abolição aboliu?

Mônica Lemos – 

A Princesa Isabel realmente aboliu a escravatura?

A abolição da escravatura no Brasil ocorreu em 13 de maio de 1888 por meio de uma Lei assinada pelo Princesa Isabel que teria libertado cerca de 400 escravos nesta ocasião.

O movimento abolicionista já vinha ocorrendo em diversas partes do país e ganhava cada vez mais força. Era um caminho sem volta.

A título de exemplo, o advogado Luiz Gama, considerado um herói pelo seu ativismo abolicionista no século 19, foi responsável pelo inventário de um comendador português chamado Manoel Joaquim Ferreira Neto. Em uma linha de seu testamento, o nobre fez o pedido de que após sua morte os escravos que eram de sua propriedade fossem libertados. O ato virou algo muito comum entre os escravocratas. Era conhecido como “alforria post mortem” e funcionava como uma espécie de remissão de seus pecados, uma forma de atrair o olhar de perdão de Deus.

Enquanto os herdeiros brigavam pela fortuna herdada, o advogado Luiz Gama se apegou a essa linha do testamento e libertou cerca de 217 escravos. Esse é um dos tantos casos parecidos da época. Talvez, o mais famoso.

Mas o que seria libertar? Seria apenas liberar? Foi a Lei feliz ao libertar toda uma população negra vetando os aspectos sociais que a legislação contemplava como reforma agrária, redistribuição de renda e outros programas sociais que proporcionavam condições mínimas de sobrevivência para uma população acostumada a trabalhar por um prato de comida.

Durante toda a época em que nos ensinaram história do Brasil, em especial no ensino médio (falando para o pessoal da década de 80), aprendemos que a Princesa branca era bondosa. Mas nunca nos disseram que libertaram uma população sem condição alguma de viver fora do sistema da escravidão.

Então, os negros saiam da zona rural sem terra e sem recursos, em busca de oportunidades nos grandes centros. A marca da propriedade não estava nas inicias de seu ex-dono em sua pele apenas, mas estava na cor de sua pele. Estava também em sua cabeça, que aceitava qualquer coisa para sobreviver, afinal, era negro! Essa sensação de pertencimento a alguém, de servir alguém, de subserviência, os perseguia e, por mais louco que isso possa parecer, persegue a muitos até os dias atuais.

Coube ao povo preto, nos grandes centros, migrar para os arredores da cidade. Rapidamente as periferias foram ocupadas pela população negra, tendo boa parte dessa população permanecido na zona rural, trabalhando por um prato de comida.

Educação, oportunidade de trabalho e situações que lhes proporcionassem ascensão iria demorar um certo tempo para acontecer (ainda há muita luta em torno disso). Qual o trabalho que sobrou para o negro da cidade? O trabalho doméstico, com o salário sem qualquer regulamentação trabalhista, e trabalho braçal também sem muitos direitos, de igual forma.

Tempo foi passando… Alguns poucos, mais resistentes, estudavam e conseguiam romper com a rígida estrutura do racismo enraizado.

Hoje, ao celebrar-se os 133 anos da abolição da escravatura, enxergamos que é uma data muito mais política do que festiva.

Todos nós nascemos racistas. Esse é o primeiro ponto. Só a partir desse reconhecimento é que podemos iniciar o processo de desconstrução e ressignificação disso. Na minha branquitude, não consigo imaginar colocando a nota fiscal do celular de minha filha na bolsa dela, caso haja uma abordagem da polícia. Mas acreditem, milhares de mães negras fazem isso para provar que o objeto foi legitimamente adquirido.

Os filhos do branco não precisam ter medo do segurança do shopping, mas já ouvi relatos de que filhos de preto, por mais que pertença a determinada classe social, sentem, no mínimo, frio na barriga.

Tudo isso acontece hoje por causa de uma lei que veio disfarçada de liberdade, mas recheada de crueldade. Libertar sem dar condições de ser livre é clausura velada.

A luta pelo combate ao racismo continua a ecoar.