A cruzada obscurantista

No livro O fascismo eterno (Editora Record, 2018) Umberto Eco analisa o que chamou de “sinais do fascismo” e diz que se não todos estiverem presentes numa sociedade, basta um “para fazer coagular uma nebulosa fascista” e servir de alerta. Além da violência, como um dos componentes essenciais do fascismo, ele se refere a outros, como um constante estado de ameaça, obsessão por conspirações e culpados externos, controle e repressão da sexualidade, linguagem limitada e repetitiva, a repulsa ao moderno, o machismo, o racismo e a oposição à análise crítica, no qual o anti-intelectualismo é uma de suas expressões.

Para ele o fascismo “ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas. Infelizmente a vida não é fácil assim. O Ur-fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”.

No contexto brasileiro atual, muitos analistas percebem alguns dos sinais apontados por Umberto Eco como Rudá Ricci no livro Fascismo brasileiro – e o Brasil gerou o seu ovo da serpente (Kotter Editorial, 2022). Um dos seus componentes é a cruzada obscurantista que se expressa no anti- intelectualismo, a repulsa ao pensamento crítico, o desprezo ao conhecimento científico, à ciência e à cultura que são essenciais no processo de embrutecimento e pavimenta o caminho da barbárie.

Esse processo – que não é apenas no Brasil – teve grande impulso com a expansão da internet, com as fake news, teorias da conspiração e redes (anti) sociais. A ideia de que a terra é plana é apenas uma das muitas imbecilidades que circulam nessas redes, que tentam refutar – sem qualquer fundamento – teorias científicas consolidadas há séculos, pelo menos desde Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1571- 1630).

Umberto Eco se refere ao que chamou de “legião de imbecis” que antes não tinham espaço para escrever (e falar) asneiras e que ganhou espaço com a internet que “promove o idiota de aldeia a portador da verdade”.

Em relação ao desprezo pela cultura no Brasil, os dados são evidentes, desde os recursos (parcos) para a área, o despreparo de secretários de cultura, defesa da ignorância etc., e nesse sentido é compreensível que no dia 5 de maio de 2022 tenha sido publicada no Diário Oficial da União a decisão do presidente da República de vetar integralmente a Lei Aldir Blanc 2, que previa um repasse de 3 bilhões da União para os Estados, Distrito Federal e municípios para a área cultural, com o argumento de que “contrariava os interesses públicos”.

No dia seguinte, foi a vez do veto integral Lei Paulo Gustavo que previa o repasse de R$ 3,86 bilhões de recurso da União para a cultura, totalizando assim 8,8 bilhões. As duas leis têm por objetivo incentivar atividades culturais no país, como exposições de arte, festivais, feiras culturais, cursos, conceder bolsas de estudos, aquisição de obras de artes, construção e/ou reformas de bibliotecas, museus etc.

No entanto, para o bem da cultura e da sociedade brasileira, no dia 5 de julho de 2022, em sessão conjunta, o Congresso Nacional derrubou os vetos do presidente, frustrando assim a intenção de reduzir (ou acabar) com recursos para a cultura.

No artigo “Mercadores da ignorância”, publicado no jornal Rascunho (Curitiba) em julho de 2022, José Castilho professor da UNESP e ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC), ao escrever sobre a ignorância afirma que ela é parte de um processo mais geral, histórico na sociedade brasileira e para compreender como ela se faz presente (e suas consequências) é necessário ter uma visão histórica. Nesse sentido diz: “Não é por acaso que constatamos os milhares de brasileiros, nossos vizinhos, parentes ou amigos de infância, ainda aplaudindo o abominável que nos preside no mais alto cargo público do país. Não vivenciamos apenas um ciclo político social onde os métodos fascistas de governar, hoje travestidos da retórica neoliberal que criminaliza a política e exalta o ‘gestor eficaz’, sejam o centro dos impasses e angústias individuais e coletivas”, (…) “estamos colhendo os frutos de fomentar uma sociedade que cultiva a ignorância há séculos”. É a ignorância que torna os cidadãos incapazes de exercer a própria cidadania, de não perceber os mecanismos de manipulação política e controle social, no qual há “uma parte enorme da sociedade envolvida pelo manto excludente da ignorância”.

Castilho cita um artigo da jornalista Maria Cristina Fernandes, publicado no jornal Valor Econômico no dia 3 de maio de 2022 no qual ela “sintetizou os desastres governamentais que colocaram o país a nocaute: péssima gestão do covid-19 — o país tem 11% das mortes mundiais pela pandemia e sua população é de apenas 3% da população do planeta; a inflação é a maior dos últimos 27 anos”. Considere-se ainda que  o país voltou ao mapa da fome (são mais de 33 milhões de pessoas que passam fome no país) , e mesmo com grave déficit habitacional “o orçamento de habitação popular caiu 98%”. Há ainda a vergonhosa existência de trabalho escravo, crescimento do desmatamento e diminuição de fiscalização e “os recursos de combate ao trabalho infantil foram reduzidos em 95%; o desmatamento em terras indígenas cresceu 138%.

A pergunta que faz é: o que explica que apesar disso ainda tem o apoio de parte expressiva da população brasileira? Ignorância apenas é insuficiente para explicar. O que existe, também, é uma identidade por parte de segmentos da sociedade –de ignorantes e letrados – com aquilo que eles se sentem representados, ou seja, endossam a violência, o anti-intelectualismo como valor e o preconceito com padrão moral. O problema, contudo, não é apenas o posicionamento político, mas a negação das regras da democracia, a defesa de ditadura, tortura, nepotismo, incitação à violência, desprezo pela ciência e o conhecimento, e, assim, por isenção ou militância, autorizando a barbárie (o risco não está apenas no que um líder fascista possa fazer, mas no que ele autoriza aos seus seguidores).

Um país que retorna ao vergonhoso mapa da fome.

Dados da Oxfam Brasil (oxfam.org), em junho de 2022, citado por Castilho, demonstram que o país atingiu número de 33,1 milhões de pessoas que não têm o que comer portanto, que passam fome e que “58,7% da população vivem em algum grau de insegurança alimentar, com o país regredindo nos últimos quatro anos a índices da década de 1990”.

Nesse sentido, há um imenso desafio para um governo democrático: grandes investimentos nas áreas de educação, saúde, ciência, meio ambiente. Reverter o processo atual de destruição, com os recordes de desmatamentos, proteção de áreas indígenas, recursos para tecnologia e cultura, enfim, mudar o que tem sido feito até agora, de desmonte do estado em todas as áreas. 

A ignorância e sua apologia, a cruzada obscurantista, trazem riscos e consequências para a democracia no país, com a abolição de todas as conquistas sociais obtidas com muita luta desde o fim da ditadura. Defender o que ainda resta da democracia, dos ataques infundados às suas instituições, ou seja, as afrontas às instituições democráticas, assim como combater o culto da violência, da estupidez e da ignorância, é um dever de todos os que a defendem a democracia e fazer isso cotidianamente, antes que seja tarde. Como escreveu Fernando Pessoa: “combater, sempre em toda parte, três assassinos: a ignorância, o fanatismo e a  tirania”.