A mentira na política

A mentira está intimamente ligada à política, e tem sido ao longo da história, objeto de reflexões de psicanalistas, psiquiatras, filósofos, sociólogos, cientistas políticos, historiadores, etc.. Atualmente se potencializa com o desenvolvimento tecnológico, com a expansão e influência das redes sociais e tem ganhado ‘novos ares’ no que se tem chamado de pós-verdade, quando crenças e convicções têm se sobreposto aos fatos

Em seu ensaio Verdade e política, publicado no livro Entre o passado e o futuro (São Paulo, Editora Perspectiva, 1997), a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) escrito em função das controvérsias que se seguiram após a publicação do livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963) afirma que podemos chamar de verdade aquilo que não podemos modificar e que, claro, se contrapõe a mentira e que “Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra”, e que ninguém havia até então incluído a sinceridade entre as virtudes políticas e sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao oficio não só do político ou demagogo, como também do estadista (p.283). 

Para ela “a verdade factual não é mais auto-evidente do que a opinião, e essa pode ser uma das razões pelas quais os que sustentam opiniões acham relativamente fáceis desacreditar a verdade factual com simplesmente outra opinião” (p.301). Assim, a  verdade nunca esteve entre as virtudes políticas e mentiras sempre foram (fartamente) utilizadas como instrumentos para a conquista e manutenção do poder político.

Nesse sentido, a marca distintiva da verdade factual consiste em que seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre a veracidade pessoal e sim a falsidade deliberada, a mentira (p.308).

Em um momento de guerra, o uso de mentiras se amplia e pode trazer graves conseqüências. Há muitos exemplos, como entre outros, as invasões do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003) pelos Estados Unidos, duas das muitas intervenções militares em outros países (sem que tenha ocorrido, como hoje em relação a invasão da Russia na Ucrânia, uma solidariedade internacional às vítimas, da mesma forma, violências e abusos patrocinados pela União Européia na Líbia e no mediterrâneo central, com milhares  de vítimas e refugiados). Além dos objetivos estratégicos, desconhecidos pelo público em geral, sempre se usou de mentiras e manipulações para motivar apoios. No caso do Iraque, a de que havia provas de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, que era aliado de Osama Bin Laden, e que teve responsabilidade nos ataques do 11 de setembro de 2001.

Outro exemplo: em junho de 1971, o jornal The New York Times teve acesso a um documento, que ficou conhecido como Os Documentos do Pentágono e publicou uma série de matérias sobre a real participação dos Estados Unidos na guerra do Vietnã. Os documentos mostraram como o governo mentia descaradamente sobre a guerra e suas justificativas. O pretexto só se revelou (publicamente) ser uma farsa em 2005. Trata-se do que teria ocorrido no golfo de Tonquim no dia 2 de agosto de 1964, quando o governo foi informado que três navios do Vietnã do Norte se dirigiam rumo ao destróier norte-americano (USS maddox) que estava em missão de vigilância e espionagem na costa do país carregados com torpedos.  Alegando que os navios teriam sido atacados, os EUA declaram guerra ao Vietnã e só 50 anos depois, documentos da Agência de Segurança Nacional, a NSA, vieram a público afirmar que a presença das lanchas torpedeiras da marinha norte-vietnamita nunca foram confirmadas, ou seja, agentes da NSA distorceram os fatos e ajudou a precipitar e justificar a guerra, com as conseqüências conhecidas.  

Há um aspecto relevante em relação ao uso da mentira por parte dos governantes, especialmente quando tem sua credibilidade posta em xeque, é a difusão do medo como uma das estratégias. É o que ocorre quando, por exemplo, um presidente mente à nação a respeito de uma ameaça externa inexistente, sabendo que os cidadãos, em geral, desconhecem o que de fato está ocorrendo. A guerra das Malvinas (2 de abril a 14 de junho de 1982) foi um exemplo que a ditadura militar argentina tentou usar para mobilizar o país contra a o Reino Unido, mas cujo resultado foi o contrário do que a ditadura esperava. A derrota levou a queda da junta militar que governava o país desde o golpe de 1976. 

No livro Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional (Rio de Janeiro, Zahar, 2012) de John Mearsheimer afirma que “Líderes que mentem para seus cidadãos pelo que acreditam serem boas razões estratégicas podem, no entanto, produzir danos significativos a seu corpo político, fomentando uma cultura de desonestidade. É por isso que a difusão do medo e os acobertamentos estratégicos são os tipos mais perigosos de mentiras que os líderes podem contar”.

Outra parte da mentira é o seu acobertamento estratégico interno são mentiras que procuram a ocultar políticas fracassadas, seus erros (nunca reconhecidos) ou suas políticas malsucedidas. 

Em relação ao Brasil, algum dos usos de mentiras na política foi analisado no livro “Você foi enganado: mentiras, exageros e contradições dos últimos presidentes do Brasil” de Chico Otavio e Cristina Tardáguila (Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2018). O livro “é composto por algumas das muitas histórias que envolvem mentiras, exageros e contradições que marcaram a vida política do país no último século” no qual os políticos têm usado a mentira como um instrumento de conquista e manutenção de poder. 

São muitos exemplos. Das cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes em 1921 que atacava o clube militar e seu dirigente (Hermes da Fonseca); o plano Cohen em 1937, um documento falso atribuído aos comunistas e foi pretexto para a instauração da ditadura do Estado Novo (1937-1945); a negação oficial das torturas, assassinatos e prisões políticas na ditadura militar (1964-1985); as mentiras  sobre a doença de Tancredo Neves  em 1985, até as mentiras de Michel Temer, para justificar o golpe de 2016 e depois como presidente. Como o livro foi publicado antes das eleições de outubro de 2018, certamente seria enriquecido com muitos exemplos da máquina de produzir mentiras, especialmente via redes sociais, do candidato vencedor e depois também como presidente da República.

Segundo o site Aos fatos, em 1.162 dias como presidente, Bolsonaro deu 5.004 declarações falsas ou distorcidas. Os dados  “agrega todas as declarações de Bolsonaro feitas a partir do dia de sua posse como presidente”. As checagens são feitas pela equipe do Aos Fatos semanalmente (Atualizado em 08 de Março, 2022). https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/10601/?page=122

No artigo A mentira na política e o ideário fascista, publicado no jornal o Estado de S. Paulo (11/04/2019), Eugenio Bucci, ao analisar o que chamou de “indústria da mentira” se refere, entre outras mentiras (e imbecilidades)  a afirmativa segundo a qual o nazismo era de esquerda e que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado. Para ele  as “mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram o público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo”. 

Trata-se de imposturas, uma verdadeira usina de mentiras “controlada pelos governistas (que)  planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem”. 

Como diz Matthew D’Ancona em Pós-verdade. A nova guerra contra os fatos em tempo de fake news (Faro Editorial, 2018) “Na longa decadência do discurso público, que, finalmente, conduziu à era da pós-verdade, a classe política e o eleitorado conspiraram em favor da degradação e debilitação do que dizem um ao outro. Promessas irrealizáveis são compatibilizadas com expectativas absurdas; os objetivos inalcançados são ocultados pelo eufemismo e pela evasão; o hiato entre retórica e realidade gera desencantamento e desconfiança. E em seguida, o ciclo recomeça. Quem ousa ser honesto? E quem ousa dar importância a honestidade?”(p.128). W