A relação da fé e da religião enquanto existência sóciopolítica

Quem acompanha minhas colunas quinzenais percebe que sempre abordo a relação entre a religião e a política do ponto de vista mais acadêmico. Por ser esta a primeira coluna do ano de 2022, peço licença para expressar-me de forma mais livre para fazer um recorte dentro do tema política e religião sobre o que pode ser uma posição reacionária ou progressista dentro do campo religioso e do campo da espiritualidade ou da fé.

Reitero minha declaração em uma das primeiras colunas de 2021 onde afirmo que, em tempos de fundamentalismo religioso e político, é necessário discutir como essas duas áreas se cruzam e como elas influenciam e se deixam influenciar socialmente.  Por isso, é importante entender que a religião está relacionada a uma questão identitária, a visão de mundo, ao meio social, cultural e político. Por outro lado, a política se faz no coletivo sócio-cultural que nos forja enquanto ser humano, permeando as relações sociais e culturais.

Nesse sentido, é importante entender que as religiões podem ser progressistas  ou reacionárias. Podem libertar para uma cosmovisão ampla e humana, ou podem servir de bolha antidemocrática, invisibilizando ainda mais as pessoas vulnerabilizadas e oprimidas pelo sistema. Também é importante entender que a fé pode existir independentemente de uma pertença religiosa, sem um templo físico, pode existir por si e para si, muito embora geralmente ela esteja atrelada a um sentimento religioso. E a fé, que muitas vezes norteia a existência e alimenta a esperança dos oprimidos e humilhados pelo sistema. 

Há uma frase de Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano (1994) in ‘Las palabras andantes?’: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” De alguma forma a fé e/ou a religião é isso, essa utopia que nos auxilia a caminhar! Mas, é sempre bom refletir sobre o fato de que, como disse anteriormente, as religiões podem ser progressistas ou reacionárias. De tal forma, a fé pode salvar, pode ser uma tábua de salvação em meio a um oceano de desespero, ao passo que a religião pode oprimir e se colocar como uma falsa tábua de salvação.

Certa vez, li um depoimento de uma pessoa que afirmou que foi a fé que lhe fez suportar o claustro de uma prisão injusta.  A pessoa cria que iria ser livre e provar sua inocência, essa era sua fé! Sua fé se apoiava em sentimentos que culturalmente existiam em sua consciência, que tinham ligações religiosas, mas que não o aprisionavam nem o oprimiam. Li sobre outros casos semelhantes a este quando a fé os fez suportar a dor e a solidão. Essa fé pode se manifestar de várias formas e em várias direções, em objetos, entidades ou em algo subjetivo e abstrato. A fé, assim como a humanidade, é plural e diversa! Ela, muitas vezes, nos ajuda a caminhar e a nos manter de pé.

A religião é algo eminentemente social, de caráter coletivo, instituída pelos indivíduos que partilham das mesmas crenças e norteados pela mesma moral comunitária. Ela pode interferir politicamente na sociedade e tentar sustentar seus dogmas para direcionar o caminho pelo qual as pessoas devem seguir. Ela, ou elas, as religiões, podem, portanto, se utilizar da fé para subjugar, dominar e suprimir a diversidade e a pluralidade, essa postura seria reacionária, e a política, historicamente é possível constatar, é mestre na utilização da religião ou da fé para direcionar politicamente uma sociedade no sentido de suas pretensões. É a dominação pela fé! 

    Sua postura diante da vida, assim como sua postura no campo religioso, pode ser reacionária ou progressista. Essa postura diz muito mais sobre você do que sobre o que você acredita. Eu acredito, tenho fé e esperança em dias melhores. Não sou religiosa, mas minha postura diante da vida é progressista, por isso minha fé caminha nesse sentido. É a fé na justiça social, fé numa sociedade plural e com equidade, onde as oportunidades existam para todas as pessoas. Então, como estamos começando 2022, desejo que você não perca sua fé e que não se deixe oprimir. Que a fé alimente seus passos e lhe conceda forças para lutar por dias melhores em 2022. Que avistemos no horizonte a vida livre da opressão e dos fundamentalismos religiosos.

REFERÊNCIAS:

GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes. Trad. de Eric Nepomuceno. Gravuras de J. Borges. Porto Alegre: Ed. L&PM, 1994.