A Rússia, a Ucrânia e o Brasil

Com justa razão, as tensões no Leste europeu começam a ganhar centralidade na pauta política de todo o mundo. Afinal, os seus acontecimentos e desdobramentos podem ajudar a moldar uma nova correlação de forças na geopolítica, impactando todas as partes do globo.

A Ucrânia é um país relativamente grande para os padrões territoriais europeus. Inclusive, é uma potência agrícola com destaque para o milho, trigo e cevada. O país teve sua Independência da antiga URSS proclamada em 24 de agosto de 1991. Atualmente é governado por Volodymyr Zelenskiy, um ex-humorista, outsider de direita, que defende o alinhamento e mesmo a inclusão da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

A OTAN foi criada em 04 de abril de 1949, para se opor ao avanço do Bloco Socialista e sob liderança dos Estados Unidos também teve como signatários Inglaterra, França, Canadá, Holanda, Dinamarca, Portugal, Itália, Bélgica, Noruega, Islândia e Luxemburgo. Hoje, são 28 membros, cobrindo a América do Norte e praticamente toda a Europa, inclusive a Turquia.

O clima na Região começa a ficar mais tenso quando o ex-presidente ucraniano Víktor Yanukóvytch, pró Moscou, foi destituído em 2014, a partir de protestos semelhantes à Primavera Árabe e às manifestações que aconteceram no Brasil entre junho e julho de 2013. Ato contínuo, à destituição de seu aliado, a Rússia ocupou a Crimeia, até então pertencente à Ucrânia. Moscou argumentou legitimidade histórica e um plebiscito realizado ainda em 2014 apontou que 96,8% dos habitantes da Crimeia preferiam fazer parte da Rússia.

Recentemente, o governo de Zelenskiy passou a tensionar as relações internas ao seu território com provocações contra a população do Donbass, outra região ucraniana de maioria russa e, neste contexto, surge a possibilidade de ingresso da Ucrânia na OTAN, o que alteraria bruscamente o equilíbrio político na Região. Para a Rússia seria um risco à sua segurança nacional. Os misseis da OTAN estariam a quatro minutos de Moscou. E não foi bem isso o combinado no final da Guerra Fria.

Desde meados dos anos 1990, foram firmados acordos e tratados, a exemplo do Tratado de Redução Estratégica de Armas (START I), no sentido de evitar que países vizinhos detenham grande arsenal e/ou se tornem áreas de influência de potencias rivais, em ameaça a Rússia. Frise-se: foram esses os procedimentos pós-Guerra Fria, garantido salvaguarda ao país vencido na longa disputa que marcou todo o século XX.

Então, não se trata de um assunto referente apenas à soberania da Ucrânia. Aliás, A Ucrânia não tem sua soberania ameaçada. Além disso, o sujeito ativo nesta crise é muito mais a OTAN, liderada pelos Estados Unidos, que a própria Ucrânia.

Nossa hipótese para mais este avanço da OTAN no Leste europeu relaciona-se com duas variáveis. A primeira, indica questões domésticas, ocasionadas pelos baixos índices de popularidade do governo de Joe Biden, que teve seu mais baixo percentual de aprovação no último mês de janeiro, com 43%. Fator que preocupa ainda mais considerando as eleições legislativas em novembro deste ano, que pode dar maioria aos Republicanos no Congresso.

A segunda é uma disputa de longo prazo, como reação a uma nova bipolaridade que marcará o século XXI. A estratégia de provocar a Rússia também seria uma forma de arrastar a China para o conflito, ainda mais agora quando os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping assinaram acordos reforçando laços de associação estratégica. Se antes a Guerra Fria era entre Estados Unidos e URSS, neste século seria entre Estados Unidos, lutando para manter sua hegemonia, contra a aliança entre Rússia e China.

O fato é que Rússia e Estados Unidos têm poder nuclear e um conflito bélico entre as duas potências teria efeitos apocalípticos, sem vencedores. A Rússia pode reagir e estabelecer presença militar na América Latina? Afinal, Moscou tem relação consolidada com Caracas e Havana. E, China e Rússia sinalizam para a entrada da Argentina no BRICS.

Diante de tudo isto, o que e quer o presidente brasileiro com a viagem à Rússia? Por que, mesmo com as tensões no Leste europeu, decidiu manter a viagem? O atual governo brasileiro, cujo presidente já bateu continência para a bandeira do Estados Unidos, não estaria alinhamento automático com Washington?

Jair Bolsonaro imiscuindo-se em assuntos internos de outro país declarou apoio a reeleição do ex-presidente estadunidense, Donald Trump. Em seguida, levou mais de um mês para reconhecer a vitória do democrata Joe Biden. Quando confirmou sua viagem à Rússia, em declaração no último dia 03 de fevereiro, Bolsonaro chegou a se oferecer: “Se Biden me convidar aos Estados Unidos, também vou”.

Para Putin, o evento é uma possibilidade exercer influência em uma área de grande capilaridade do poder estadunidense. É possível, por exemplo, que uma das pautas da conversa entre Brasília e Moscou seja a eventual entrada da Argentina no BRICS. Por outro lado, podemos especular que os interesses do presidente brasileiro não se relacionam com temas meramente comerciais, mas sobretudo políticos.

Visitar a Rússia é, neste momento, entrar no radar dos Estados Unidos. É uma forma de valorizar o próprio passe e tentar ganhar apoio para a sua tentativa de reeleição e/ou neutralizar a simpatia de Washington a alguma alternativa à direita para enfrentar a candidatura do PT. Um eventual retorno de um governo petista reforçaria uma política externa sem alinhamento automático, com uma agenda marcada pela integração regional e pelas relações Sul-Sul, bem como fortaleceria o BRICS, tudo o que Washington não deseja.

O governo Bolsonaro não tem nenhuma identidade política com Rússia ou China, tampouco com seus aliados na América Latina. Ao contrário, sua identidade é com Ucrânia. Quem não lembra que estes os adeptos do governo brasileiro era corrente a expressão “ucranizar o Brasil”, ao crescimento da extrema-direita naquele país? Talvez, a visita de Bolsonaro a Putin seja uma tentativa de dizer para a Casa Branca que ainda pode ser útil na luta contra a esquerda. Agora só falta combinar com os russos.