Ancestralidade e matriarcado: implicações político-religiosas no ocidente

Outro dia, numa roda de conversas de um evento realizado pelo Grupo Maria Quitéria, prometi publicar uma coluna falando sobre Matriarcado. Hoje, conforme prometido, trago uma reflexão sobre o matriarcado, a ancestralidade e suas implicações político-religiosas no ocidente. Mas, para falar em ancestralidade é importante, antes, falar sobre o feminino, sobre o poder geracional feminino e sua ligação com a capacidade de existir de muitas formas: como mãe, filha, “dona de casa”, muitas vezes a mantenedora do financeiro, do material, do racional e do emocional na família. Então é preciso começar do começo e regressar até o período afro-diaspórico. E se faço esse movimento de regresso ao ventre, preciso falar dos seus desdobramentos sociais e sagrados, pois não há como falar em ancestralidade sem falar em África, e não há como falar em África, sem falar do matriarcado que nos conduz até as constituições do sagrado nas religiões afro-brasileiras. Tudo está conectado, muito embora o eurocentrismo tente apagar suas raízes.

Na diáspora africana a mulher desempenhou um papel fundamental na reconstituição dos laços familiares e na (re)construção da identidade negra daquele período colonial. Papel esse que tem reflexo direto na forma de constituição dos terreiros de candomblés e na configuração do papel feminino no universo afroreligioso, que mesmo situado em um país eurocêntrico e cuja hegemonia masculina era e é intensa e opressora, do lado de dentro dos terreiros foram as mulheres que comandaram com a força e o poder das yabás, Orixás femininas do panteão Iorubá, como Iansã, Oxum, Iemanjá, Obá, Nanã e Ewá. 

Essa força matriarcal, segundo Sampaio (2016), não existe apenas dentro dos terreiros, ela sempre esteve presente no seio das famílias pobres que se constituíram no pós-diáspora, o que provavelmente ocorreu devido à memória histórica presente nas raízes do povo brasileiro. Essas famílias, cuja maioria sempre se constituiu de pessoas negras, traziam na figura materna uma força motriz unificadora, a figura central da família, aquela figura que organiza e orienta a vida dos demais, a mantenedora, a mãe “solo”, a matriarca. Daí o termo matriarcado que, esclareço, não é o oposto de patriarcado em seu sentido ocidental! Mas para compreender esse conceito é necessário despir-se do olhar eurocêntrico para entendê-lo como algo que tem na figura da mãe um esteio; uma figura central cuja sensibilidade auxilia na liderança e na tomada de decisões da comunidade. Portanto, essa força feminina, matriarcal, está presente dentro dos terreiros das religiões afro-brasileiras através das inúmeras divindades femininas cultuadas dentro do panteão Iorubá “que trazem diferentes imagens do feminino, reveladas por meio dos mitos de cada orixá” (SAMPAIO, 2016, p. 60) e refletem o papel fundamental das mulheres nas construções sociais. Por conseguinte, essa força carregada de ancestralidade e refletida nas construções sociais, se apresenta fora dos terreiros, na memória, no DNA das construções sócio-culturais, políticas e religiosas.

Toda essa relação entre as yabás, os arquétipos e a ancestralidade é, segundo Ferreira (2015, p. 46), “uma forma cultural desenvolvida na diáspora. Não nasce como categoria, e sim como experiência e, enquanto tal, implica uma ética, salvaguardada nos corpos, das formas artísticas e nas diversas manifestações da cultura afro-brasileira”. Tanto o matriarcado quanto a ancestralidade possuem uma identidade com os termos africanos ubuntu e ukama, que “são uma marca identitária do povo africano subsaariano e juntos, cunham um clima de espiritualidade metafísica que conduz a uma ética que visa fortalecer, cuidar, gerar e transmitir vida” (NEGREIROS, 2019). Por conseguinte, esses conceitos estão intrinsecamente ligados as religiões afro-brasileiras, particularmente ao candomblé, cuja relação entre aos membros do mesmo grupo de um determinado terreiro é de laço familiar, constituindo a família do “povo de santo”. Essa família está ligada pela mitologia Iorubá, pelos Orixás que representam essa ancestralidade da Ukama e se relacionam através do Ubuntu.

No nível cultural, no conceito de matriarcado afrocentrado, as mulheres são respeitadas e valorizadas pelo fato de garantirem um ciclo contínuo da vida, tendo em vista que elas possibilitam o renascimento que renova e prolonga a vida do clã. Esse, aliás, é o conceito basilar da visão matriarcal no qual a terra é a grande mãe que alimenta e concede o renascimento a todos os seres. O matriarcado implica uma comunicação intergeracional de valores e crenças nas sociedades e que pode ser observado de forma muito profunda nos conceitos de ubuntu e ukama.

O termo ukama, especificamente, tem uma singularidade por estar ligado a uma relação materna e afetiva ao conectar ‘pessoas que bebem do mesmo leite’, estando, portanto, relacionado à irmandade, palavra esta que se conecta ao termo ubuntu, que significa humanidade, relação com o outro ou com o ser através do outro. Segundo Desmond Tutu (2004), ubuntu “é a essência de ser uma pessoa. Isso significa que somos pessoas através de outras pessoas. Nós não podemos ser totalmente humanos sozinhos. Somos feitos para interdependência, somos feitos para a família”. O autor se refere à família no sentido do ukama, dessa irmandade onde todos e todas bebem do mesmo leite e relaciona ubuntu com interconectividade, fraternidade, compaixão e abertura do espírito para a existência, de forma que o conceito se afirma como uma teologia que se opõe à violência e que tem no perdão o único caminho para a justiça e o equilíbrio.

Os conceitos supra mencionados estão vinculados diretamente ao conceito do matriarcado que está presente não apenas na base da filosofia africana como também nos terreiros, nos filhos da diáspora, que através dos mitos ressignificados e reinventados, mantiveram viva a figura da matriarca, da yalorixá mantenedora do terreiro e das yabás que permitem que todos os filhos bebam do mesmo leite e se mantenham intercontectados através delas. Essas yabás por sua vez, para assim se manterem, transferem arquetipicamente seus atributos humanos para os que lhes estão conectados e assim, se perpetuam no mito e o mito nos filhos de santo.

Para Bárbara (2002), o lugar que as mulheres ocupam nos terreiros é certamente resultado do processo afro-diaspórico no período escravagista que se construiu com base na origem da cultura africana, e é exatamente nesse cenário que os conceitos de matriarcado, ubuntu e ukama se cruzam, permitindo que as pessoas, nesse processo desumano, fossem alimentadas do mesmo leite, o leite materno que nasce das tetas de uma África Mãe que está presente na memória ancestral de cada filho seu que vê nos Orixás a força da resistência e a fé em dias melhores.

Dentre os Orixás do panteão iorubá, a yabás são, na perspectiva do patriarcado, as transgressoras, as que apresentam dupla resistência, tanto por serem negras quanto por serem mulheres em meio ao patriarcalismo colonial, e é por isso que elas são símbolo de poder para quem acredita na regência de seu ‘ori’ – cabeça. As principais orixás cultuadas no Brasil são: Iansã, Oxum, Iemanjá, Obá, Nanã e Ewá. Cada um com suas qualidades, todas antropomorfizadas pelo mito e, diferentemente da mulher submissa e coadjuvante que se vê no cristianismo, nos candomblés as yabás são guerreiras, poderosas e donas de si, mulheres empoderadas cujos arquétipos são refletidos nas características e personalidades dos filhos e filhas que tem por regência, por “orixá de cabeça” aquela deusa forte e que domina. 

Mas pensar o feminismo nas religiões afro-brasileiras não significa dizer que o Candomblé seja uma tradição religiosa pautada pela perspectiva revolucionária da ausência do patriarcado, afinal, o candomblé se estabeleceu em um país cuja cultura patriarcal e eurocêntrica é hegemônica, e claro que influenciou na história e na estruturação do candomblé no Brasil. No entanto, as mulheres negras escravizadas no Brasil trouxeram consigo o espírito de resistência e de luta, e de tal forma, deram continuidade ao culto de seus ancestrais africanos, reunindo as diferentes nações em um mesmo espaço sagrado. Essas mulheres quebraram a ordem vigente de uma sociedade predominantemente patriarcal cristã e por isso, elas seguem fortes e empoderadas, influenciadas pela ancestralidade e pela força das Yabás.

Nesse espaço de resistência e enfrentamento a mitologia Iorubá permaneceu viva, e coube à mulher afro-diaspórica, dentro do contexto social dos terreiros e nas constituições familiares, sustentar-se como a grande matriarca que mantem viva a sua memória ancestral através dos candomblés, dos seus mitos e, principalmente de suas deusas femininas, as Yabás. O matriarcado sobreviveu ao patriarcado através das tradições orais, através dos mitos e da ancestralidade dos candomblés. 

De tal forma, há um cordão umbilical que nunca foi cortado entre a África e seus descendentes e é ele que fornece o alimento do ubuntu e do ukama, o leite da mãe Terra – a África, que existe em cada filha e filho seu. Esse alimento, servido no candomblé através dos Orixás, fortalece o povo de terreiro com o seu axé, de modo que essa relação intrínseca entre a personalidade do sujeito que recebe o alimento e seu Orixá regente, sustenta e influencia o comportamento do crente que se imbui de características ancestrais relacionadas a descrição da personalidade mitológica. 

A relação entre o mito e as divindades do candomblé se torna ainda mais peculiar no caso das yabás que empodera as mulheres e lhes confere poder, tanto as matriarcas nos terreiros quanto as mulheres fora deles que veem nos orixás uma forma fortalecer-se a si mesmo para enfrentar o dia-a-dia frente ao sistema patriarcal. Essa imagem arquetípica, ao conferir suas características e atributos às “filhas de santo”, confere também a força da ancestralidade vinculada a este, bem como toda sua filosofia de humanidade biocêntrica e matriarcal que lhes cabe dentro dos candomblés que são carregados do axé, do ubuntu e do ukama, elementos presentes na mitologia Iorubá e no DNA ancestral e afrodiaspórico dos negros e negras que re-existem no Brasil.

 

REFERÊNCIAS

BARBARA, Rosamaria. A dança das Aiabás: dança, corpo e cotidiano das mulheres de candomblé. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. doi:10.11606/T.8.2002.tde-09082004- 085333. Acesso em: 22 jan. 2021. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-09082004-085333/pt-br.php

FERREIRA, Elizia. Pensamento Afro-brasileiro: uma filosofia que resiste em nossas formas culturais de matriz africana. Revista Cult n° 204 – Dossiê Filosofia da Ancestralidade. São Paulo: Editora Bregantini, 2015.

NEGREIROS, Regina Coeli Araújo Trindade. Ubuntu: considerações acerca de uma filosofia africana em contraposição a tradicional filosofia ocidental. Problemata: R. Intern. Fil. V. 10. n. 2 (2019), p. 111-127 ISSN 2236-8612. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7443/problemata.v10i2.47738. Acesso em 10 Jan. 2021.

SAMPAIO, Dilaine Soares. As lideranças femininas no universo afro-brasileiro. In: SANTOS, Patrícia Teixeira (org.). África & Brasil: religiosidade e ritos. Curitiba: Positivo, 2016.

TUTU, Desmond. Receita de Desmond Tutu para a paz. Disponível em <https://www.beliefnet.com/Inspiration/2004/04/Desmond-Tutus-Recipe-ForPeace.aspx?p=2>. 2004. Acesso em 11 jan. 2019.