Breves considerações sobre o fascismo

Uma questão relevante que merece ser discutida hoje é o fascismo. Há muitos livros, ensaios, artigos etc., sendo publicados, inclusive no Brasil , que tudo indica, se ampliou depois da eleição de Bolsonaro em 2018, com reedições de livros sobre o fascismo, publicação de diversos artigos em livros, sites, blogs, revistas, entre outros. O que vamos procurar argumentar aqui é que o fascismo não foi um fenômeno datado, circunscrito aos anos 1920/40 e derrotado em 1945. Embora  em contexto distinto e sem que haja governos estritamente fascistas, creio ser possível se referir (e analisar) uma política fascista nos dias atuais, incluindo o Brasil.

Na Introdução no livro A linguagem fascista, Carlos Piovezani se refere ao historiador italiano Emilio Gentile, considerado um dos maiores especialistas em fascismo do mundo, para quem se deve distinguir o que foi o fascismo histórico e o que frequentemente tem sido chamado de fascismo. Para ele, o que torna um movimento ou regime fascista é a existência de um Estado totalitário, governo de partido único, com a submissão da sociedade a um sistema hierárquico militarizado “que procura transformar, regenerar ou até criar uma nova raça em nome de seus objetivos imperialistas e de conquista”. (A linguagem fascista, Carlos Piovezani e Emilio Gentile, Editora Hedra, São Paulo, 2020, p.41).

Nestes termos, para ele,  o que existe hoje são regimes autoritários, governos de extrema direita em alguns países (como na Hungria, Filipinas, Polônia, Brasil etc.), mas não fascismo. Carlos Piovezani, no referido livro, no capítulo em que analisa mais especificamente o caso do Brasil (“Bolsonaro fala às massas: do baixo clero político à presidência da República)” (p.141 a 245) discorda e considera que há no país, se não um regime fascista, mas uma linguagem fascista e analisa mais especificamente as falas e discursos de Bolsonaro e para isso reconstitui sua trajetória, vereador à presidência da República e depois de eleito, e o considera protagonista e incentivador de ações violentas “somadas a expedientes populistas”, alguém que passou de político insignificante à porta-voz do pensamento reacionário “que encontra guarida no imaginário brasileiro”, usando uma (eficiente) estratégia de verbalizar declarações polêmicas para garantir espaços na mídia “revelando seu desprezo à democracia e aos direitos humanos” e que foi favorecida por uma verdadeira espiral do silêncio (do Congresso, da justiça etc., e até mesmo de setores progressistas (que o desprezava) e também o fato de não ser punido, nem pelo parlamento (Câmara de vereadores e Congresso Nacional) nem pela Justiça, que o levou a continuar cometendo o que chamou de “atrocidades verbais e institucionais” não apenas enquanto deputado federal, mas também como presidente da República.

Mas isso significa que é fascista?

No livro Como funciona o fascismo – a política do ‘Nós’ e ‘Eles’ (Editora L&PM, 2018) Jason Stanley analisa a permanência do fascismo e de como funciona, em especial o que chama de política fascista e seu interesse principal são as formas como se articulam as táticas fascistas enquanto mecanismos para alcançar o poder. E afirma que a política fascista não conduz necessariamente a um estado explicitamente fascista, mas ajuda a criar as condições e para isso algumas estratégias são importantes, como a defesa do retorno a um “passado mítico”, anti-intelectualismo, defesa da hierarquia (um manda e outro obedece),  apelos à noção de pátria e desarticulação da união e do bem-estar público”. Poderiam ser acrescentados outros aspectos como transformar os adversários políticos em inimigos, a repulsa ao diálogo, o culto da violência (expressa no culto às armas), a intolerância. E que se associa a exploração de ressentimentos, incitamento do ódio (a pessoas e instituições), ataques à democracia e suas instituições, negacionismo (discursos e práticas anti-ciência, revelando ignorância) e ainda (tentar) aparecer como um “salvador”, um líder que fala para e em nome do povo, mas o exclui de qualquer participação. O povo serve apenas para apoiar, ouvir e obedecer.

Stanley chama a atenção para os perigos da política fascista, da forma especifica como ela desumaniza segmentos (expressivos) da população e à política do “nós” e “eles”que limita a capacidade de empatia entre os cidadãos, levando à justificação do tratamento desumano, indiferença ao sofrimento alheio, especialmente de quem não concorda com o líder, ficando sujeitos à violência, supressão da liberdade etc.

E se historicamente, o fascismo chegou ao poder com essas práticas, acrescente-se um contexto de descrédito de instituições, como os partidos políticos, o parlamento (e seus representantes), que continuam hoje, como expressam os altíssimos índices de abstenções (além de votos nulos e em brancos) nas eleições, inclusive nas democracias europeias. Mas o fato de existir nesses países uma tradição democrática (que não é o caso do Brasil) também não impossibilita o fascismo. Primo Levi, poeta e escritor italiano, uma de milhões de vítimas dos nazistas, escreveu que o nazismo teve êxito em um país de grande tradição cultural, civilizado (Alemanha), e que isso não impediu que se seguisse cegamente um desequilibrado, violento, assassino, cuja figura hoje provoca asco e desprezo. A questão é: se ocorreu em países com tradição democrática, imagine a possibilidade em países de larga tradição autoritária, como o Brasil, que teve prolongadas ditaduras ao longo da história.

Ao se referir a Mussolini e Hitler, Primo Levi diz que foram obedecidos, seguidos e tornado “mitos” para milhões de pessoas e alerta que nada garante que não possa ocorrer de novo, até porque seus apoiadores continuam a ser os ressentidos, ignorantes (a maioria), indivíduos sem autonomia, sem capacidade de reflexão, que apenas seguem cegamente um líder, mesmo sendo um estúpido sem qualquer qualificação (e pior, sendo eles também vítimas de suas políticas).

Ao se analisar o surgimento e consolidação do nazifascismo um aspecto importante a ser ressaltado é que tanto na Itália como na Alemanha, os respectivos ditadores (Hitler/Mussolini) ascenderam ao poder pela via democrática, ou seja, foram eleitos, e que no caso do fascismo italiano, não possuía originalmente características totalitárias, seu êxito, entre outros aspectos, foi de se mostrar para a sociedade que pela capacidade de sua liderança (Benito Mussolini) o fascismo traria a paz, segurança e ordem ao país devastado pela Guerra (1914-1918), como ocorreu também na Alemanha, com as mesmas promessas (igualmente falsas) de Hitler em relação ao nazismo.  O que ambos trouxeram, como se sabe, foram violências, perseguições, assassinatos (milhões, como os judeus na Alemanha), intolerâncias, torturas, guerras e destruição.

Mas, e quanto as suas formas atuais? Como compreendê-lo no presente? Podemos nos perguntar se a interpretação de que o fascismo clássico foi uma reação à perspectiva de ameaça revolucionária do movimento operário é correta para explicar (pelo menos em parte) se ainda é pertinente no mundo atual, onde essa ameaça não mais existe.

A resposta pode ser que o fascismo não deixou de existir porque a ameaça de uma revolução do movimento operário (ou comunista) deixou de existir, ele continua e assume outras formas.

O fascismo é uma forma de Estado de exceção dentro do Estado capitalista, e historicamente decorreu de uma grave crise política e de representatividade, e que assume formas distintas ao longo do tempo.

Fascismo ou neofascismo? Como podemos caracterizar o fascismo hoje?  Armando Boito Junior, cientista político e professor da Unicamp, no artigo A Terra é Redonda o governo Bolsonaro é fascista argumenta que vivemos no neofascismo no Brasil. Para distinguir da experiência anterior (o fascismo clássico ou original) do neofascismo, diz que se trata de um gênero, ou seja, ambos são espécies desse gênero.

Para ele, ao contrário do que pensam aqueles que recusam o conceito de fascismo ou de neofascismo para caracterizar o bolsonarismo “não é correto caracterizar o fascismo pela fração burguesa que deteve a hegemonia política no fascismo original – a grande burguesia monopolista italiana e alemã – e tampouco caracterizá-lo fazendo referências genéricas ao nacionalismo, ao militarismo e às práticas imperialistas característicos da política dos Estados fascistas originais”.

O argumento dele é que essas ideologias (e práticas) também estiveram ou estão presentes em democracias burguesas daquele e de outros períodos históricos. E que de uma mesma forma de Estado (democracia, ditadura militar ou a ditadura fascista) “são possíveis diferentes blocos no poder e, consequentemente, diferentes tipos de política econômica, social e externa”.

Outro aspecto relevante são as diferenças entre forma de Estado e bloco no poder. A ditadura fascista supõe a existência de uma ideologia e um movimento social, que são as bases de sua implantação, o que não parece ser ainda o caso do Brasil. Por isso , ele afirma que embora não tenhamos um regime político fascista, mas uma democracia burguesa deteriorada e em crise, há tanto um movimento como uma ideologia neofascista, e um governo no qual os neofascistas ocupam a posição dominante e assim embora não se pode ou não se deve descartar chegarmos a uma ditadura de tipo fascista no Brasil. (https://aterraeredonda.com.br/aterraeredondae-o-governobolsonaroefascista/).

Para o psicanalista Tales Ab’Sader no artigo “Os maus modos do neofascismo brasileiro”, publicado no site da Carta Capital no dia 21 de fevereiro de 2020, há no Brasil características suficientes para qualificar o que se reúne em torno do bolsonarismo como de um neofascismo. Para ele “Nosso neofascismo diz respeito aos modos de nossa conversão própria da política em violência, o que ninguém pode negar. Ele se ordena e se unifica, por fim, ao redor do bolsonarismo (https://www.cartacapital.com.br/opiniao/osmaus-modos-do-neofascismo-brasileiro/).

Em relação à denominação, Enzo Travesso, italiano, professor e especialista em história política e intelectual do século XX, no livro As novas faces do fascismo (Editora Todavia, 2021) prefere usar o termo pós-fascismo. Para ele, é um termo adequado para o que chamou de uma sequência histórica marcada tanto pela continuidade quanto pela transformação. Segundo Travesso, no século XXI o fascismo não terá a face de Hitler, Mussolini ou Franco nem o terror totalitário. Ao discutir esse aspecto, se refere a um importante artigo de Theodor Adorno (1903-1969) publicado em 1959 no qual ele afirma que a sobrevivência do nazifascismo é potencialmente mais perigosa dentro da democracia – como tem ocorrido hoje – do que a sobrevivência das tendências fascistas contra a democracia.

Para Travesso, o pós-fascismo é um movimento em transformação, ainda não cristalizado e com forças heterogêneas (não se pode comparar movimentos de extrema direita nos Estados Unidos, com o da França, Austrália, Grécia e Brasil, por exemplo).

Segundo ele, o pós-fascismo pertence a um regime particular de historicidade e uma das diferenças em relação aos movimentos de hoje é que um dos pilares fundamentais do fascismo clássico foi o anticomunismo, ainda hoje usado apenas como propaganda para enganar incautos e desinformados porque seus formuladores sabem perfeitamente que não há mais ameaça comunista, mas é usada com reconhecida eficácia em alguns países, como nos discursos da extrema-direita no Brasil, no qual até a Rede Globo virou comunista…

No entanto, como diz Michel Lowy, em artigo publicado no dia 9 de dezembro de 2020, a caracterização como fascista ou neofascista não pode se aplicar a todos os partidos e movimentos de extrema direita. Para ele “Algumas forças políticas têm características diretamente fascistas: é o caso do partido Aurora Dourada na Grécia, da Casa Pound na Itália, e de vários partidos nacionalistas nos países bálticos; mas outros, como os partidos racistas da Holanda, Inglaterra, Suíça, Dinamarca, não tem raízes no passado fascista”(https://www.insurgencia.org/blog/michaellowyaascensaodoneofascismo) Ele propõe designar como neofascistas “líderes, partidos, movimentos ou governos que tem semelhanças significativas com o fascismo clássico dos anos 1930 – e com frequência, raízes históricas nesse passado – mas também algumas diferenças substanciais. Trata-se de fenômenos novos, que não são idênticos aos que conhecemos no passado”.

Fascista ou neofascista, o fato é que o fascismo não foi um fenômeno circunscrito aos anos 1920/30. Já em 2012, Rob Simen, ensaísta e filósofo holandês no livro O eterno retorno do fascismo (Editora Bizâncio, Lisboa, Portugal, 2012), ao constatar o crescimento da extrema-direita na Europa e em outros continentes afirma que “o fascismo bate de novo às nossas portas, mas nos recusamos a vê-lo e chamá-lo pelo seu nome. Nesse sentido, deveríamos aprender com as lições da história para impedir sua expansão hoje e principalmente à repetição da tragédia que foi sua experiência histórica.