Com-vivendo com a diversidade étnica e religiosa: o desafio de aprender com as diferenças – Parte I

A coluna dessa semana aborda a diversidade étnica e religiosa e por ser extremamente complexo o tema, dividirei a coluna em duas etapas. Trago hoje uma releitura de um texto que publiquei há algum tempo em parceria com Carolina Trindade Lopes Negreiros, a quem agradeço imensamente pela colaboração.

Abordar o assunto da diversidade étnica e religiosa na atual conjuntura política e social brasileira é imprescindível para a garantia dos direitos humanos e dos direitos e garantias constitucionais. Nessa perspectiva, é fundamental falar sobre preconceitos e racismo religioso tendo em vista que é a população negra quem mais tem sido atingido pela violência e por falta de políticas públicas de combate ao preconceito e a intolerância religiosa:

O Estado brasileiro, historicamente, figurou como agente decisivo na perseguição das religiões afro-brasileiras, propagando os efeitos do racismo institucional também na esfera da religiosidade. O racismo religioso constitui-se como uma das graves interfaces do racismo à brasileira que assume caráter ubíquo e fluido, interseccionando-se com outros mecanismos de opressão; aglutinando sentimentos e manifestações de ódio contra os negros (VAZ, 2019).

O avanço da extrema direita no cenário político brasileiro, propagando fake news e discursos de ódio é um fator de retrocesso das conquistas sociais e políticas “e talvez aí resida o perigo: a forma como os discursos de intolerância, ódios e ressentimentos são aceitos por parcelas consideráveis da sociedade. É uma porta aberta para o fascismo” (COSTA, 2017), surgido na Itália e que serviu de base para os ideais nazistas na Alemanha, sendo marcado pelo posicionamento totalitarista, corporativista, ditatorial e militarizado, desprezando os direitos humanos, a liberdade em todas as suas formas, as artes, as atividades intelectuais e, se utilizando da religiosidade do povo para manipulá-los através de sua fé.

Um elemento forte para a disseminação do fascismo na Itália de Benito Mussolini que liderou o Partido Nacional Fascista foi à criação da imagem de líder popular e que falava diretamente com o povo, facilitando a governança, como afirma Melo (2017 p. 385): “Mussolini soube bem construir a imagem de líder enérgico, ativo, cheio de vitalidade e capacidade, assim como Hitler falava diretamente com o povo com seus discursos através do rádio”. Ainda segundo Melo (2017, p. 385/386), “o apoio financeiro para o fascismo e o nazismo veio de grandes industriais, da fusão entre o capital bancário com o capital industrial, ou seja, do capital financeiro”. Foi a partir de posicionamentos conservadores, discursos homofóbicos, xenófobos, racistas e falas extremistas, que em nada, cabe ressaltar, se parecem com o posicionamento cristão representado pela figura do Cristo bíblico, que ascendeu o autoritarismo na Itália e na Alemanha.

No Brasil atual a história parece se repetir através de mecanismos utilizados no passado, mas de forma ressignificada, com roupagem contemporânea, como é o caso da substituição das falas nas emissoras de rádio, pelas “lives” nas redes sociais e pelas “fake news” circulantes no “whatsapp” e demais redes; com o uso de frases de efeito, impositivas e por vezes clichês, resgatando o sentimento de medo e/ou impotência com relação à violência. É importante salientar que o neofascismo em um país periférico como o Brasil não pode ser comparado com o fascismo de sociedades europeias do passado, mas ainda assim, é extremamente deletério, perigoso (COSTA, 2017).

Uma questão de suma importância para o alastramento dos regimes totalitários é a ausência do sentido de pertencimento, de consciência social e de classe. Sem a criticidade própria das pessoas que sabem quem são, o que querem e como querem, é fácil para a elite dominante pavimentar sua estrutura de dominação e de conformação social, substituindo-lhes sua identidade por uma que lhes seja mais adequada aos seus interesses de dominação. Foi assim que eclodiu o Nazismo Alemão:

o problema da Alemanha residia, no fundo, nas atitudes, nos valores e nas mentalidades; são eles, portanto, que os nazistas se esforçaram para modificar, substituindo os pertencimentos de classe, religiosos e regionais por uma consciência nacional exacerbada capaz de entusiasmar o povo alemão em vista do combate a vir e de mobilizá-lo quando a guerra eclodisse. Não se tratava de confrontar os ideais estreitos da classe média inferior das pequenas cidades, mas de forjar um povo à imagem de um exército – disciplinado, resistente, fanaticamente convencido e pronto para morrer pela causa. A ‘comunidade nacional’ não era um slogan destinado a transformar as estruturas sociais, mas o símbolo de uma nova consciência de si. Inculcar este tipo de valores no povo alemão implicava, antes de tudo, valorizar a propaganda e não a política social (KERSHAW, 1997, p. 271 – Tradução livre).

Na Constituição Federal de 1988 e em outras leis infraconstitucionais, são encontrados artigos que cooperam para que os direitos fundamentais das “minorias” brasileiras sejam assegurados. Segundo Chaves (1971), o termo “minorias” é utilizado para caracterizar a situação de vulnerabilidade de grupos minoritários no Brasil, não estando relacionado à questão quantitativa, mas a situação de desvantagem social. E por entender que estas pseudo minorias são em verdade a maioria da população brasileira, prefiro utilizar o termo “minorizados”.

Dentro das populações minorizadas encontramos, no aspecto religioso, o “povo de santo”, pessoas que professam a fé nas religiões afro-ameríndias, como é o caso do candomblé, da umbanda ou da jurema, formados majoritariamente pelo povo negro e os povos das periferias. Pessoas inviabilizadas, subalternizadas e vulnerabilizadas pelas elites dominantes; pessoas politicamente não assistidas, mas que não são esquecidas politicamente já que são visitados sempre às épocas de eleições. Essas pessoas são esmagadas pela pirâmide sócio-politica por serem em sua maioria negras e por professarem uma fé que, aos olhos do “estado laico”, é demonizada por suas diferenças, muito embora, no Art. 5º, capítulo I, da CF/88 se afirme que todos possuem perante a lei o direito a exercer livremente suas crenças, constituindo-se como “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1990).

No código penal brasileiro o Art. 208, capítulo I, afirma que “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa”. No entanto, apesar da legislação, as classes minorizadas continuam a denunciar a intolerância e a violência, seja de forma física, psicológica ou patrimonial, principalmente após o avanço da extrema direita ao poder e, junto come ela, o crescimento de células religiosas fundamentalistas, alicerçados em funestos sentimentos autoritários vestidos com a velha roupa do fascismo e sua bandeira genocida que não suporta conviver com as diferenças.

A questão é que nas diferenças nos tornamos iguais e a construção humana é cimentada através dos fatos cotidianos e de nossos relacionamentos, nossa convivência. Somos e estamos em construção e temos o direito de sermos quem somos, cabendo ao outro que nos observa e conosco interage, respeitar nossa identidade, nossas diferenças, o que somos e o que queremos, pois conviver parte do princípio da cordialidade, da empatia e do respeito. Aliás, a palavra ‘com-viver’, pode ser lida como ‘viver com’, e não se vive com alguém sem respeito e cordialidade. De tal forma, com-viver implica em enxergar o outro sem vilipendiá-lo nem violentá-lo. Ver o outro como ele é, e não como queremos que seja, respeitando-o e ‘com-vivendo’ em paz. Esse é nosso maior desafio.

Enxergar as diferenças, entender onde nos igualamos e onde nos diferenciamos, vivenciar as experiências percebendo que não há supremacia étnica, religiosa ou qualquer outra denominação, nos possibilita apreender a pluralidade e a diversidade na qual estamos imersos e é exatamente isso que nos torna iguais. Somos iguais em nossas diferenças porque cada um é um indivíduo, é único! Mas coletivamente somos multiétnicos, multiculturais e por isso precisamos romper os paradigmas estabelecidos historicamente pelo Brasil colonialista, eurocentrista e patriarcal da superioridade de uns em detrimento de outros.

Um dos pilares fundamentais para a construção de uma sociedade igualitária, plural e com respeito a diversidade é a formação cidadã possibilitada por uma educação crítica que nos permita ver e entender a luta de classes e quem somos. A partir disso será possível emancipar das condições de desigualdades e injustiças. Essa educação caracterizada pela prática social “que atua na configuração da existência humana individual e grupal, para realizar nos sujeitos humanos características de ‘ser humano’” (LIB NEO, 2010, p. 30), poderá humanizar as relações sociais e capitais, tendo em vista que uma “sociedade em que as relações sociais baseiam-se em relações de antagonismo, em relações de exploração de uns sobre outros, a educação só pode ter cunho emancipatório, pois a humanização plena implica a transformação dessas relações” (LIB NEO, 2010, p. 30).

Mas a história da educação brasileira nos conta muito mais sobre a formação aristocrática das oligarquias em detrimento a educação da população em geral, tendo inicio com os jesuítas impondo seus costumes e sua religiosidade diante da população indígena e destruindo a cultura dos povos originários, contribuindo para o surgimento de uma sociedade caracterizada pelo autoritarismo sem limites das oligarquias dominantes. O modelo eurocêntrico de educação “era exclusivamente para os filhos dos aristocratas que quisessem ingressar na classe sacerdotal; os demais estudariam na Europa, na Universidade de Coimbra. Estes seriam os futuros letrados, os que voltariam ao Brasil para administrá-lo” (RIBEIRO, 1993, p. 15) e dar continuidade as castas oligárquicas.

A primeira instituição de ensino superior no Brasil, a Escola de Cirurgia da Bahia, foi criada em 1808. Em 1827 foram criadas as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda. Apenas em 1920 é fundada a primeira universidade brasileira para oferecer cursos variados, a UFRJ, no Rio de Janeiro, oferecendo cursos de Medicina, Engenharia e Direito. Os pobres, os negros, os invisibilizados, não tinham acesso às universidades, porque é exatamente assim que se mantém uma política de subordinação. Essa prática de cerceamento das classes populares a uma educação crítica e de qualidade estende até os dias atuais. Apenas em 2004, quando foi criada a universidade para todos, começou-se a dar oportunidade de ingresso e permanência ao povo em geral, preenchendo os espaços universitários com as “minorias” que foram historicamente excluídas desse processo. Essa ação de exclusão tem desdobramentos sociais que agravam e aprofundam as diferenças. Por isso, é preciso sair das bolhas sociais das quais somos reféns históricos para enxergarmos além da nossa própria existência e compreendermos a multiplicidade, a pluralidade e a cumplicidade que nos envolve, rompendo as barreiras étnicas, religiosas e sociais, sem violentar o outro, sem violar o campo social e existencial do outro. Quando chegarmos nesse patamar de consciência, teremos vencido as barreiras que isolam os grupos e suas diferenças, então será possível nos vermos como iguais e cultivarmos uma cultura de paz.

 

REFERÊNCIAS

NEGREIROS, Regina Coeli Araújo Trindade; LOPES, Carolina Trindade. Diversidade étnica e religiosa no Brasil: desafios para a Cultura de paz. BAGGIO, Vilmar (org.). DNA Educação. 2 ed. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação Brasileira).

COSTA, Homero de Oliveira. O perigo do fascismo no Brasil. Ano. 2017. Disponível em: https://nossaciencia.com.br/artigos/o-perigo-do-fascismo-no-brasil/ . Acesso em: 26 fev. 2019.

CHAVES, L. G. Mendes. Minorias e seu estudo no Brasil. In: Revista de Ciências Sociais Volume 2, número 1, 1971.

KERSHAW, Ian. Qu’est-ce que le nazisme? Problèmes et perspectives d’interpretation. 2a ed. Paris: Gallimard,1997. Cap. 7: “Le IIIe Reich: une ‘réaction ou une ‘révolution’ sociale?, p. 251-283.

LIB NEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? – 12. ed. – São Paulo, Cortez, 2010.

MELO, Adriana Sales de. KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977. Resenha. In: Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 9, n. 3, p. 384-390, dez. 2017.

RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil: os iorubas. São Paulo: Editora Odu-duwa, 1996.

VAZ, Lívia Sant’Anna. Por que o racismo religioso tem terreno fértil para prosperar no país. BLOG SOCIOESCRITORES. Disponível em: https://socioescritores.blogspot.com/2019/01/por-que-o-racismo-religioso-tem-terreno.html Acesso em: 29 Jan. 2019