(Con)vivendo com a diversidade étnica e religiosa: o desafio de aprender com as diferenças – Parte II

Na coluna passada abordei a diversidade étnica e religiosa e por ser extremamente complexo o tema, dividi a coluna em duas etapas. O texto tem por base um artigo que publiquei há algum tempo em parceria com Carolina Trindade Lopes Negreiros, a quem agradeço imensamente pela colaboração, mais uma vez. Recordo a você, caro leitor ou leitora, que abordar o assunto da diversidade étnica e religiosa na atual conjuntura política e social brasileira é imprescindível para a garantia dos direitos humanos e dos direitos e garantias constitucionais.

Gostaria de iniciar a coluna explicando que a memória é a grande chave do significado da ancestralidade e do respeito. Precisamos saber quem somos nós e pra isso é preciso olhar para trás, fazer um movimento que, na filosofia africana, se chama de movimento sankofa, palavra que significa a sabedoria de aprender com o passado para construir o presente e o futuro.

Olhando para o passado é possível ver que, ao longo dos séculos no Brasil, muitas vidas foram violentadas, principalmente as vidas de pessoas negras, indígenas e principalmente de mulheres negras e indígenas, o que não exclui as mulheres brancas de descendência europeia e asiáticas que aqui viveram. Nesse sentido, o maior exemplo, do qual não devemos nos esquecer, é a diáspora africana que representa o degredo e a expatriação dos povos negros oriundos da África, invadida e sangrada em um uma existência nefasta e desumana do período da escravidão (GENARRI, 2011).

Sendo a memória é a grande chave do significado e da significação da ancestralidade, ela é de suma importância para que não mais ocorram genocídios, embora saibamos que os homicídios por diferenças étnicas, sexuais, sociais e religiosas ainda são uma realidade no país, uma verdadeira praça de guerra social.

Fatos históricos ocorridos no Brasil, dentro desse contexto, como foi o caso da Revolta dos Malês, ocorrida em 25 de janeiro de 1835 durante o governo de Francisco de Sousa Martins, devem ser recobrados pois, já naquela época, houve o planejamento da destruição sistemática dos quilombos e o assassinato de pessoas negras, além da repressão das manifestações culturais de origem africana por suspeitas de que os batuques poderiam gerar rebeliões, pois havia a possibilidade de unir escravos de diferentes grupos étnicos e linguísticos separados para que não houvesse unidade linguística. O que essa memória nos diz? Diz que muitas foram às tentativas de destruir a herança e a história negra, de negar sua existência, de calar a sua voz e silenciar o oprimido desde a diáspora negra até os dias atuais, quando ainda ocorrem genocídios do povo pobre e preto das comunidades ou quando tentam calar a voz daqueles que se levantam contra o sistema opressor, como é o caso de Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco. Mulher negra, mãe e cria da favela da Maré no Rio de Janeiro. Socióloga, política, feminista e defensora dos direitos humanos, assassinada brutalmente em 14 de março de 2018, juntamente ao seu motorista, Anderson Gomes.

A história nos mostra muitos epistemicídios, etnocídios e genocídios ocorridos de diversas formas. Suprimir a consciência através do isolamento e da ocultação da história, da cultura, dos costumes e da identidade do povo é fragilizar e/ou sufocar sua existência, e é dessa forma que se instalam as oligarquias, que se escraviza e oprime o povo, silenciando suas dores e mesmo sua existência enquanto ser no mundo. “Uma sociedade justa dá oportunidade às massas para que tenham opções e não a opção que a elite tem, mas a própria opção das massas (…) Para que haja  revolução das massas é necessário que estas participem do poder” (FREIRE, 2011, p. 49).Isso, as elites não permitirão! Elas sobrevivem e mantem seu status quo de forma parasitária. Permitir que nós tenhamos acesso a nossa história e nossa ancestralidade é dar acesso as armas da revolução.

É por esse motivo que é importante afirmarmos nossa identidade, lembrarmo-nos de onde viemos, quem somos e para onde queremos ir; é importante lembrar a história, revisitá-la!  Histórias como a da diáspora africana devem ser lembradas para não serem repetidas, pois tentar calar a voz dos grupos socialmente minorizados é recorrente em nossa história, como foi o caso da queima dos registros e documentos, em dezembro de 1890, pelo então ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e Presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, Rui Barbosa.

Vigilância contínua e a revisitação constante da história são necessárias para que os mesmos erros não se repitam, avançando em uma pauta de igualdade de direitos e garantias individuais e coletivas, preservando o estado democrático de direito, rompendo com quaisquer lampejos de estruturas totalitárias/autoritárias que não reconheçamos grupos sociais, as diferenças, a pluralidade e a diversidade humana, garantindo assim a dignidade da pessoa humana, fortalecendo a sociedade justa, plural e igualitária, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades, apesar das ameaças, pois como afirma o poeta russo Maiakoviski, “Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas” (GUERRA, 1987, p. 28).

É preciso entender os lugares da memória e da identidade, do respeito e dignidade, da empatia, da pluralidade e da diversidade para vivermos a cultura de paz. Nossa construção perpassa pelo entendimento de que somos partes de um todo que não existe isoladamente porque é a diferença que nos torna iguais. É preciso empoderar os sujeitos, torná-los visíveis e protegê-los, legitimando as forças que constroem a democracia, os direitos humanos e o respeito às diferenças. Portanto, a cultura de paz precisa ser fomentada a partir desse entendimento de fusão inviolável, de conquistas e hibridações. O caminho para seguirmos deve ser dialógico, construindo pontes que possam ligar pessoas, diminuir às adversidades e os abismos sociais, culturais e religiosos, permitindo a mobilidade e a interação. Nessa caminhada, a memória é o que fortalece cada um e todos nós coletivamente, despertando a consciência de classe, através da história, da informação fundamentada e do debate dialógico.

Cada indivíduo tem seu papel fundamental, seu lugar na história que, dinâmica e hibridamente se constrói e se reinventa costurada com cores e mãos diversas, reafirmando valores, rompendo paradigmas e buscando novos diálogos e novos laços de solidariedade para convivermos em paz. Os refluxos histórico-sociais são importantes para a compreensão da existência e das conquistas dos direitos e garantias, individuais e coletivos, e para a garantia de uma igualdade que reconheça as diferenças: “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades” (SANTOS, 2003, p. 56).

 

REFERÊNCIAS

NEGREIROS, Regina Coeli Araújo Trindade;LOPES, Carolina Trindade.  Diversidade étnica e religiosa no Brasil: desafios para a Cultura de paz.  BAGGIO, Vilmar (org.). DNA Educação. 2 ed. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2019.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 2ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Paz e Terra, 2011.

GUERRA. Emílio Carrera. Maiakóvski: Antologia Poética. Editora Max Limonad, 1987.

GENNARI, Emilio. Em busca da liberdade: traços das lutas escravas no Brasil. 2 ed – São Paulo: Expressão Popular, 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para Libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.