Eleições de 2022: entre a civilização e a barbárie
A pesquisa do Instituto Datafolha e TV Globo do dia 22 de setembro, confirmou a consolidação de Lula, com chance de vencer a eleição no primeiro turno: 47% contra 33% de Bolsonaro. Uma pesquisa do IPEC (ex-Ibope), divulgada no dia 19 de setembro, havia constatado a mesma coisa: Lula em primeiro lugar e a estabilidade nas intenções de voto. O mesmo instituto divulgou uma pesquisa em junho de 2021, que mostrava Lula com 49%, portanto basicamente com o mesmo percentual de intenção de voto da pesquisa mais recente, 47%, considerada a margem de erro da pesquisa (2%) e pouco mais de 50% dos votos válidos (excluídos os votos em brancos e nulos), que garante a vitória de Lula no primeiro turno. Embora muitos apoiadores de Bolsonaro afirmem não acreditar em pesquisas, usam e divulgam o chamado deepfake que é uma técnica que usa imagens e sons reais, utilizando inteligência artificial para substituir rostos e vozes em vídeos, com falas e ações descontextualizadas e manipuladas, com resultados aparentemente verossímeis. E isso tem sido usado nesta eleição, com montagens, algumas muito grosseiras, como a que aparecem os apresentadores do Jornal Nacional mostrando Bolsonaro à frente nas pesquisas, aliás, desmentida no próprio jornal (se não acreditam em pesquisas, por que fazem isso?).
Na medida em que o dia das eleições se aproxima o presidente e alguns dos seus apoiadores intensificam os ataques às pesquisas eleitorais que mostram a liderança de Lula. Conforme revelou uma matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, grupos bolsonaristas no Telegram têm espalhado, sem provas, mensagens sobre um processo de fraude eleitoral com o objetivo de impedir a vitória de Bolsonaro ainda em primeiro turno. Especialistas em monitoramento de redes sociais consultados para a matéria, afirmam que essa estratégia é semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos, quando o então presidente Donald Trump acusou o Partido Democrata de manipular o resultado das urnas para eleger Joe Biden e o resultado foi à invasão do capitólio em janeiro de 2020 por seus fanáticos seguidores. No Brasil, essa retórica é também usada tanto pelo presidente como por membros do governo.
Durante a visita ao funeral da rainha Elizabeth II, ele disse: “Eu digo: se eu tiver menos de 60% dos votos, algo de anormal aconteceu no TSE”. Este é o grande álibi para questionar o resultado da eleição, com desdobramentos imprevisíveis. Com base em que se questionam as pesquisas? O único Instituto no qual Bolsonaro aparece à frente nas pesquisas é da Brasmarket, que divulgou uma pesquisa patrocinada pela Associação dos Supermercados do Rio (Segundo noticiado na época, no início de junho de 2022, o ministro Paulo Guedes se reuniu com a associação Brasileira de Supermercados e pediu que o setor congelasse os preços para ajudar a reeleição de Bolsonaro).
Segundo o agregador de pesquisas do Estadão, que usa dados de 14 institutos de pesquisa desde 2021, todos mostram a vitória de Lula tanto no primeiro como em um eventual segundo turno. O que as pesquisas têm mostrado é uma estabilidade de Lula há mais de um ano, em todas as pesquisas feitas pelo Ipec e Datafolha (que não trabalham para partidos e candidatos) e mais do que isso: a não ser um acontecimento extraordinário, dificilmente vai se alterar faltando poucos dias para a eleição.
Em 2018, houve um “acontecimento extraordinário”, o imprevisível que pode ocorrer em qualquer eleição e que teve uma importância inegável: o atentado contra Bolsonaro no dia 6 de setembro, na cidade de Juiz de Fora (MG), uma facada que mudou o curso da eleição, fake ou não (entre muitos que questionaram a facada, há um documentário – disponível no Youtube, intitulado “Bolsonaro e Adélio – uma fakeada no coração do Brasil” do repórter investigativo Joaquim de Carvalho e TV 247 no qual, como expressa o titulo, há um questionamento não só da facada, mas das circunstâncias e desdobramentos), mas questionada ou não, verdade ou mentira (os médicos que o atenderam asseguram tratar-se de fato de uma facada, com hemorragia interna e que ele foi operado e depois levado para um hospital de São Paulo) o fato é que inegavelmente, impulsionou a candidatura de Bolsonaro, que passou dos 28% no início de setembro para 46% em menos de um mês (beneficiado também com a ausência de Lula, que liderava as pesquisas e foi processado, condenado e preso no âmbito da Operação Lava Jato) um crescimento extraordinário que pode ser atribuído, em grande parte, a vitimização, o beneficio de não se expor em debates, a presença 24 horas em todos os jornais, canais de televisão, rádios etc., uma visibilidade que ele não tinha, com apenas 8 segundos nos programas eleitorais de rádio e TV (sua campanha era basicamente nas redes sociais).
A facada foi o único fator? Certamente não. O resultado de um processo eleitoral é complexo. São vários fatores. A vitória de Bolsonaro em 2018 foi resultado de um conjunto de fatores, entre eles o uso eficiente das redes sociais, em especial do Whatsapp (com muitas mentiras e manipulações e sem controle do Tribunal Superior Eleitoral, TSE), a participação de pastores evangélicos neopentecostais (que continuam neste ano), assim como o papel dos militares. Estes, me parece, têm um papel relevante. E entre muitos aspectos, pode ser citado o que ficou conhecido como o tuíte da ameaça que foi um tuíte do Comandante do Exército, General Villas Boas, dirigida ao Supremo Tribunal Federal em abril de 2018, para que não concedesse habeas corpus a Lula – o que foi acatado pelo STF, e Lula foi preso três dias depois e teve posteriormente o registro de sua candidatura cassada pelo TSE).
Há outros componentes desse processo como a atuação de organizações de direita, nas ruas e nas redes (devidamente financiadas), o uso de tecnologia com propagandas dirigidas, criadas por empresas que se especializaram em guerra psicológica, e que com base ampla de dados de pessoas, construíram narrativas para manipular emoções (usadas com eficácia nas eleições de Trump em 2016, como foi revelado no que ficou conhecido como o escândalo da Cambridge Analytica e também no Brasil em 2018, especialmente via Whatsapp).
Nas eleições de 2022, o contexto é outro. Não teve tuítes com ameaças, Bolsonaro não é mais o outsider que se apresentou em 2018: hoje tem um governo de quatro anos em julgamento, entre os quais a gestão considerada uma das piores do mundo, da pandemia que infectou mais de 30 milhões de pessoas e matou mais de 700 mil e seu comportamento no curso da pandemia, com chacotas, ridicularizando quem tomava vacina (foi contra no início) – até hoje não se vacinou –além de outros aspectos do seu governo como o desmonte de políticas públicas e suas conseqüências para a população socialmente mais vulneráveis, o retorno do país ao mapa da fome (mais de 33 milhões de pessoas passando fome), isso pode explicar porque mesmo com todo o chamado “pacote de bondades” com fins claramente eleitorais, diminuição do preço da gasolina, diesel, botijão de gás, aumento do auxílio Brasil etc., não conseguiu reverter nem as intenções de votos para Lula, nem ampliar a sua e muito menos diminuir a rejeição. Também não tem mais a Operação Lava Jato, que muito contribuiu no processo de desqualificação da política, da antipolítica que Bolsonaro falsamente se apresentava como se fosse de fora, mas que funcionou na sua campanha: ele soube canalizar um sentimento antissistema (e antipolítica) de segmentos da sociedade brasileira que ocuparam as ruas para exigir mudanças no sistema político e que foi ignorado, inclusive pelo Congresso Nacional.
Ao comparar as eleições de 2022 com a de 2018, há aspectos que permanecem, entre eles, a mentira, habilmente explorada especialmente contra Lula, mas há outro, igualmente perverso e que atenta também contra a democracia que é o medo, o pânico moral. Em 2018 a mentira esteve sempre presente, como ilustram o que foi chamado de Kit Gay e tantas outras, divulgadas exaustivamente nas redes sociais antipetistas e em 2022, as mentiras continuam, como a de que Lula vai fechar igrejas evangélicas, ser a favor do aborto etc., mas em 2022 acrescenta-se o medo como um dos componentes mais destacados. Frei Betto, em um artigo publicado no dia 12 de setembro de 2022 “faltam 20 dias, por que tanto medo?” se refere ao que chamou de um clima eleitoral inusitado que se deve a uma cultura miliciana, e salienta que vivemos hoje no país em uma atmosfera impregnada de belicismo no qual se teme não uma palavra ofensiva do adversário, mas uma facada ou um tiro. O adversário, num clima de ódio e intolerância, passou a ser o inimigo e ser eliminado. É a banalização do mal – para usar uma expressão de Hannah Arendt – e que Frei Betto chamou de Bolsonarização da violência.
Há hoje um clima de medo, de violência e intolerância e a internalização do medo é um dos primeiros passos para uma ditadura. Foi isso que todas as ditaduras sempre fizeram e sua possibilidade não deve ser subestimada. Os eleitores de Lula, com exceções, temem até mesmo colocar um simples adesivo nos carros, usar camisetas e bandeiras, com medo de serem agredidos. Há um grande e justificável temor que alguns apoiadores, armados, estimulados e fanatizados, se derrotados nas urnas possam promover tumultos, não aceitando os resultados da eleição e assim justificar ou procurar fazê-lo, uma intervenção militar.
Uma pesquisa divulgada pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade em parceria com o Fórum brasileiro de Segurança Pública revelou que quase 70% dos entrevistados afirmaram ter medo de agressão física em razão de sua escolha político-partidária. Mas, os adversários do atual presidente também têm medo de com sua reeleição, se acelere o processo de desmonte do Estado, das políticas públicas de proteção aos mais vulneráveis socialmente, que se fortaleçam ainda mais o comércio das armas (em beneficio dos fabricantes e sem resolver o problema da violência, ao contrário) e ainda o estímulo ao garimpo ilegal, inclusive em terras indígenas – invadidas impunemente – a destruição da floresta amazônica (o desmatamento cresce a cada ano), desmonte dos órgãos de controle ambiental etc.
Faltando poucos dias para a eleição, com Lula à frente, e chances de ganhar no primeiro turno, para sua campanha é fundamental gerenciar os riscos, evitar qualquer passo em falso que possa ser usado contra ele. O desespero dos derrotados se amplia na reta final da campanha e no momento se discute o chamado voto útil, os votos que seriam para dois candidatos, Ciro Gomes e Simone Tebet, que juntos têm em torno de 12% das intenções de votos e sem chances reais de sequer irem para um eventual segundo turno. Esse é o esforço que tem sido feito. Há pouco, além de três ex-ministros do governo de Fernando Henrique Cardoso (José Carlos Dias Miguel Reale Júnior e José Gregori), uma carta dirigida a Ciro Gomes assinada por 55 líderes políticos e intelectuais da América do Sul, entre eles o ex-presidente do Equador Rafael Correa e o prêmio Nobel da Paz Adolfo Esquivel, pedem que ele renuncie em favor de Lula porque no Brasil, o embate, segundo eles, é “entre fascismo e democracia”.
Nestas eleições, se trata do embate da civilização contra a barbárie (selvageria; qualidade ou condição do que é bárbaro, cruel ou desumano. Incivilidade; em que há grosseria, rudeza ou falta de civilidade) em defesa da democracia contra todas as formas de autoritarismo, contra as violências, intolerâncias e ódios. E será mesmo o nós contra eles, nós que defendemos a democracia, contra seus inimigos, entre eles os fascistas que como disse Umberto Eco no livro O fascismo eterno, não foi uma experiência histórica datada, pode voltar. Vencer o medo para garantir a democracia, da civilização contra a barbárie, e o retorno da paz, da prosperidade e da esperança. E Lula representa tudo isso. A possibilidade de, mais uma vez, a esperança vencer o medo. E faltam poucos dias.