Espiritualidade, saúde e a política que permeia esses espaços – Parte II

Na coluna da semana passada eu trouxe uma reflexão diferente. Fiz uma abordagem sobre o tema da espiritualidade relacionada às questões de saúde e política a partir da releitura de um texto que publiquei junto com Renata Shirley Ferreira na REVER: Revista de Estudos da Religião da PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Repito o que disse anteriormente sobre o tema: na atual conjuntura pandêmica e em meio ao negacionismo, nunca é demais falar sobre a ciência e seus entrelaçamentos. Por ser um tema complexo e uma discussão que merece profundidade, dividi a coluna em duas partes, e embora não tenha nenhum objetivo nem pretensão de exaurir o tema, até porque isso não é possível nesse espaço, hoje trago a finalização da abordagem anterior.

Como disse anteriormente, ao falar sobre espiritualidade, a primeira imagem que vem à cabeça relaciona-se, geralmente, com religiosidade, tendo em vista que a fé em algo não-humano, algo ‘sobrenatural’ sempre se atrela a algo institucionalizado, como é o caso da religião, no entanto, a espiritualidade é um conceito amplo e que pode existir de diversas formas, como veremos a seguir.

    O termo ‘espiritualidade’ tem um caráter complexo, sendo imanente e, ao mesmo tempo, transcendente ao indivíduo. Sua relação mental é intrínseca, mas  sua relação espiritual se dá de forma extrínseca ao indivíduo. A saúde, conforme a OMS – Organização Mundial de Saúde, busca compreender o ser humano em um conceito holístico e inclui nos tratamentos práticas não biomédicas, ampliando seu conceito de saúde, bem como a forma de tratar e auxiliar nos processos de cura, no caso do Brasil, através das PIC’s – Práticas Integrativas e Complementares, incorporadas e admitidas através da Política Nacional de Práticas Integrativas Complementares, instituída em 2006 pelo Ministério da Saúde, conforme descrição no site do Ministério supra mencionado:

As Práticas Integrativas e Complementares (PIC’S) são tratamentos que utilizam recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais, voltados para prevenir diversas doenças como depressão e hipertensão. Em alguns casos, também podem ser usadas como tratamentos paliativos em algumas doenças crônicas (MINISTÉRIO DA SAÚDE).

Na academia, na antropologia das Religiões, tem sido frequente o estudo sobre temas como cura e crença (TAVARES, 2016), o que inclui terapêuticas não médicas ou biomédicas, bem como heterodoxias terapêuticas que se contrapõem ao cartesianismo hegemônico na área médica, nesse sentido, cabe pensar a definição de cura que, segundo Latour (2002), é um modo de relacionar-se com o outro. Outra antropologia que vem ganhando espaço é a médica que ganha impulso, no Brasil, a partir de Laplantine e traz, através de alguns núcleos, uma proposta de medicina social (SANTOS, 2014), cujo movimento sugere à biomedicina uma perspectiva multidisciplinar, dadas as peculiaridades culturais observadas e percebidas socialmente, entendendo que o “corpo funciona como marca dos valores sociais e nele a sociedade fixa seus sentidos e valores” (SANTOS, 2014, p.40). Portanto, há uma perspectiva nos estudos da antropologia médica no Brasil, conforme Santos (2014), que caminha no sentido da antropologia das religiões, concebendo a pessoa em sua totalidade, esquivando-se um pouco do pressuposto cartesiano, dada a sua insuficiência no sentido de curas, subjetividades e percepções através dos fenômenos que a ciência cartesiana não consegue explicar.

Para Lemos (2019), a medicina convencional é deficiente no que tange ao tratamento de algumas doenças e, para adequação a esse contexto, e em sua grande parte por motivos políticos, algumas mudanças foram realizadas nesse sentido. Como desdobramento, no Brasil, “a Política Nacional de Humanização, pautada no princípio da integralidade do atendimento ao usuário, leva em consideração as diferentes dimensões do processo saúde-doença, mostrando que produção de saúde é sempre produção de subjetividade” (LEMOS, 2019, p. 689 apud FERREIRA, 2015).  Para a autora, a religiosidade é uma função humana subjetiva que não deve ser desconsiderada, pois, “existem evidências de que as práticas religiosas repercutem na redução da secreção de cortisol, hormônio relacionado ao estresse, além de aumentarem o número de neurotransmissores envolvidos no controle da dor” (LEMOS, 2019, p. 694). Ela ainda afirma que a meditação, orações e outras atividades espirituais podem controlar a dor oriunda do estresse porque a resposta frente a esse quadro está no eixo hipotálamo-pituitária-adrenocortical.  De tal forma, segundo ela, as respostas físicas são ações espirituais-religiosas a endorfina, hormônio responsável pela sensação de bem estar que também está associado em situações de fé e prática de fé. Além desses fatores, Lemos (2019) afirma que a condução religiosa através de valores e padrões éticos estipulados influencia na saúde através das mudanças nos hábitos, mas, o mais importante a ser destacado é que a espiritualidade pode ser percebida “como uma força positiva nos processos de recuperação da saúde e de ressignificação das doenças” (LEMOS, 2019, p. 699), o que é a pedra no sapato da ciência moderna e seu paradigma cartesiano.

Espiritualidade no Ubuntu africano

Ubuntu, no contexto político, é tido como um dos princípios fundamentais na Nova República da África do Sul e nos países subsaarianos como Zimbabue, onde tem sido usado como forma de resistência à opressão política, sendo, portanto, um conceito transversal que perpassa a visão do sujeito sobre o mundo, seja ela uma postura ética individual, seja uma postura política diante do outro, seja uma postura social diante da vida, pois, ubuntu é ser através do outro, é a consciência de pertença a algo maior (TUTU, 1999). É um desligar-se de si mesmo para ver o outro no mundo, de forma que, nesse aspecto, o ubuntu chega a tocar a esfera espiritual, pois o outro é o ‘eu transcendente’, o lócus onde o imanente transcende a si mesmo em um caráter de alteridade, de comunidade e, portanto, de humanidade.

No contexto do pensamento do ubuntu africano, o sujeito se caracteriza pela humanidade com seus semelhantes e através da veneração aos seus ancestrais, de forma fraterna e com compaixão, e aqueles que compartilham do princípio do Ubuntu no decorrer de suas vidas continuarão em união com os vivos após a sua morte. 

Segundo o arcebispo Sul Africano Desmond Tutu (2004), consagrado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua luta contra o Apartheid, Ubuntu é a essência do ser humano, está relacionado com nossa interconectividade, com a fraternidade, a compaixão e com a abertura do espírito para a existência. Ele coloca o conceito como sendo uma teologia do ubuntu por se opor à segregação e à violência, de forma que o perdão seja o único caminho  para se alcançar a justiça e o equilíbrio, numa tentativa de conexão com a espiritualidade em  um caminho de respeito a ancestralidade; um ethos moral condizente com o próprio cristianismo e outras religiões, solidificando a tradição africana da ancestralidade, da espiritualidade,  do respeito, da compaixão e da fraternidade com o outro e com o lugar em que habita.

A palavra Ubuntu, que tem seu sentido carregado de existência e humanidade por ser uma ética que permeia as relações entre humanos de uma forma geral, e entre humanos e não-humanos, e que de uma forma abrangentemente humanista, inclui em si conceitos como empatia, alteridade, compaixão, solidariedade, ancestralidade e espiritualidade. Ela confere um caráter de humanidade através da alteridade, da fraternidade,  da existência do outro  e esses fatores influenciam na diminuição da dor, do sofrimento da segregação e através do perdão, o que foi insistentemente trabalhado por Desmond Tutu e Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul,  que afirmou que o termo não significa que uma pessoa não deve se preocupar com o seu progresso pessoal, pois é importante servir, ser útil para a comunidade no qual se está inserido. Ele afirma que  o progresso pessoal deve estar ao serviço do progresso da comunidade, pois isso é o mais importante na vida. Essa relação implica em um ethos que está implícito no conceito de caridade e humildade comum a varias religiões. 

Em todo esse cenário é possível perceber que as mudanças ocorridas possibilitam uma visão mais holística da pessoa e desconstrói o paradigma cartesiano para abordar o outro de forma multidimensional, envolvendo a comunidade, o governo no que tange a criação de políticas públicas e a educação em todas as dimensões do indivíduo. No entanto, ainda há muito a ser feito para que o tema da espiritualidade não seja utilizado para manobrar ou subalternizar pessoas, por isso, é preciso decolonizar o pensamento ocidental para novas possibilidades em perspectivas plurais da existência para a manutenção da saúde mental sem traços de fundamentalismos e sem o uso político da espiritualidade ou da religiosidade de forma a ferir a própria existência ou a existência do outro. E assim, desejo que todos desenvolvamos a prática do ubuntu. Saúde!

Referências:

 

LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Trad. Sandra Moreira . EDUSC, Sao Paulo: 2002

LEMOS, Carolina Teles. Espiritualidade, religiosidade e saúde: uma análise literária. Revista Caminhos – Goiânia, v. 17, p. 688-708, set. 2019. ISSN 1983-778X. Disponível em: <http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/6939>. Acesso em: 22 out. 2019. doi:http://dx.doi.org/10.18224/cam.v17i2.6939.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. O que são as Práticas Integrativas e Complementares – PICs? Disponível em: http://saude.gov.br/saude-de-a-z/praticas-integrativas-e-complementares#referencia. Acesso em 16 out. 2019

NEGREIROS, Regina; FERREIRA, Renata Shirley. Antigos paradigmas e novas possibilidades: perspectivas plurais integrativas da espiritualidade e saúde a partir das PICs e da noção africana do Ubuntu. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/50680. Acesso em 11 Ago 2021.

 

SANTOS, Viviane Fernandes Conceição dos. Antropologia médica, do corpo à corporeidade. Scire Salutis. (2014). Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/282517361_Antropologia_medica_do_corpo_a_corporeidade. Acesso em 16 out. 2019.

TAVARES, Fátima; BASSI, Francesca (org.). Para além da eficácia simbólica: estudos em ritual, religião e saúde. Salvador: EDUFBA, 2012.

TUTU, Desmond. Il n’y a pas d’avenir sans pardon. Paris: Albin Michel, 1999.

TUTU, Desmond. Receita de Desmond Tutu para a paz. Disponível em https://www.beliefnet.com/Inspiration/2004/04/Desmond-Tutus-Recipe-For-Peace.aspx?p=2.  (2004). Acesso em 11 jan. 2019.