Feminicídio não entra de quarentena

No dia 20 de abril de 2020 foi publicada na revista Carta Capital a matéria “Violência doméstica, a outra urgência da América Latina em quarentena” informando que “Brasil, México e Argentina encaram o mesmo problema de sempre, mas com agravantes: as mulheres estão confinadas com seus agressores”. O que se pode constatar com os dados disponíveis é que a pandemia trouxe, além do medo e pânico, infectados e mortes, também o aumento do estigma, xenofobia, discriminação e violência contra as mulheres, especialmente a violência doméstica.

Não por acaso, o slogan el femicidio no se toma cuarentena  (O feminicídio não entra de quarentena) foi criado na Argentina, país no qual nos primeiros 20 dias de quarentena, iniciada no dia 20 de março de 2020, 18 mulheres foram assassinadas por companheiros ou ex-companheiros e tem sido usado por um movimento chamado Nenhuma a menos e as ONGs MuMaLá e La Casa Del Encuentro que lutam em defesa das mulheres e contra a violência de gênero.

Como diz a matéria, “A situação se repete no México, no Brasil e no Chile, onde as ações do governo e de associações civis são insuficientes para conter os assassinatos”. No México, foram 983 feminicídios em 2019 e 3.226 mulheres foram vítimas de homicídio doloso. Segundo a matéria, desde o início da quarentena os pedidos de ajuda cresceram 60% na Rede Nacional de Refúgio e a acolhida de vítima aumentou em 5%. O que os dados têm demonstrado – e não apenas nestes países – como no Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, Austrália, Singapura e Chipre – para citar alguns – é o aumento da violência contra as mulheres durante a pandemia. Se a situação anterior já era grave, aumentou com o isolamento.

Uma nota divulgada pelo Ministério Público de São Paulo no dia 13 de abril de 2020 afirma que a casa é o lugar mais perigoso para uma mulher e informa dados da pesquisa Raio X do feminicídio de São Paulo constatando que 66% dos casos consumados ou tentados foram na casa da vítima. Como disse Flavia Oliveira, no artigo voltando para casa (Jornal O Globo 17/4/2020), estar em casa pode ser refúgio ou risco. Mundo afora, diz ela “avolumam-se relatos de aumento da violência doméstica como colateral nefasto das recomendações de isolamento”.

Com o início  do isolamento em vários países, a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) publicou um documento  no qual pede aos países que aumentem os investimentos em serviços online e em organizações da sociedade civil com o objetivo de atender às mulheres vítimas de violência,  como, entre outras iniciativas, a criação de sistemas de alerta de emergência em farmácias e supermercados, abertos durante a quarentena, que possam prestar auxílio às vítimas.

Na Argentina, a recomendação foi atendida: o governo firmou com a Confederação Farmacêutica um pacto chamado máscara vermelha: Se uma mulher disser por telefone ou pessoalmente estas palavras, a linha de denúncia, ligada à polícia, será acionada.

Uma matéria publicada na revista Galileu em março de 2020, mostra que com o Coronavírus a violência contra as mulheres aumentou durante quarentena na China, o primeiro país a estabelecer o isolamento social. Ao longo do período de restrição de deslocamento, foram milhares de denúncias de chinesas sobre violência doméstica.

Em relação ao Brasil, o Relatório Global da internacional Humans Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos), divulgado no dia 17 de janeiro de 2019, afirma, com os dados relativos a 2018, que havia uma epidemia de violência doméstica no Brasil. Segundo o relatório eram mais de 1,2 milhão de casos de agressões contra mulheres pendentes na Justiça brasileira. Em 2018, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram assassinadas 4.539 mulheres, sendo 1.333 tipificados como feminicídio.

No Distrito Federal, um levantamento feito pelo G1 (globo.com) com dados da Secretaria de Segurança Pública, indicou que em 2019, 60 mulheres foram assassinadas, sendo 33 casos de feminicídio. O DF é um dos 16 estados que o número de feminicídios é maior do que de homicídios de mulheres.

O Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),  tem a quinta maior taxa de feminicídio, um assassinato  a cada duas horas e ainda dois dados relevantes: as pessoas negras são maioria entre as vítimas e nos casos de estupros, os registros apontam para a relação de parentesco entre vítimas e agressores: a maioria é constituída por familiares (pai, padrasto, irmão, etc.).

Em relação aos estados, vejamos alguns dados. Em São Paulo, uma reportagem publicada no jornal Folha de S. Paulo no dia 15 de abril de 2020, mostra que o número de mulheres assassinadas dentro de casa quase dobrou no período de quarentena, em comparação com os mesmos dias no ano passado. Foram dezesseis nas três primeiras semanas; um ano antes, no mesmo período, foram nove.

No Rio de Janeiro, a demanda por medidas protetivas no plantão judiciário aumentou com o decreto de isolamento do governo do estado: foram 660 pedidos em apenas oito dias.

Em relação ao Rio Grande do Norte, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública é um dos estados com maior crescimento de feminicídio no país:  houve um aumento de 34% nos casos de lesão corporal dolosa (quando há intenção de ferir) e de 54,3% nos de ameaças e ainda 40 casos de notificações de estupros e estupros de vulneráveis, um aumento de 100% em relação ao mesmo período de 2019.

Só nos dois primeiros meses de 2020, dados da Secretaria de Estado e Segurança Pública e Defesa Social registrou 267 assassinatos, sendo 17 mulheres e quatro caracterizados como feminicídio.

Sobre violência doméstica, segundo a Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises Criminais, vinculada à Secretaria, os registros de ocorrências em fevereiro de 2020 foram 354 casos e em março 385, totalizando 739, sendo que Natal e Região metropolitana somam 583 casos (305 e 278 respectivamente).

Mas a violência contra as mulheres, como se sabe, antecede esse período. Entre 2014 e 2017, segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação, o Rio Grande do Norte registrou 3.579 casos de agressão com uso de força física, 1.205 casos de agressão com uso de arma de fogo e 486 estupros no período.

De acordo com dados do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (OBVIO), de janeiro de 2015 a novembro de 2019, houve 539 assassinatos de mulheres, sendo que 26,16% foram feminicídios. As três cidades com maiores casos foram Natal, com 127 casos, seguida de Mossoró com 65 e São Gonçalo do Amarante com 31. Pelos dados disponibilizados, em 2019 uma mulher foi assassinada a cada 15 dias.

Estes dados são relativos às notificações, que não expressam o total de ocorrências: é fato a existência de subnotificação, ou seja, muitas mulheres que sofrem agressões não denunciam por medo, dependência etc., e na quarentena mais especificamente, devido à dificuldade de ir à delegacia e também pela proximidade com o agressor.

Diante de tanta violência e desrespeito aos direitos humanos, o que fazer? Há muitas iniciativas importantes. Citarei algumas, como a criação em São Paulo de um projeto chamado “As Justiceiras”, que reúne mais de 500 voluntárias das áreas do Direito, Psicologia e Assistência Social que tem ajudado mulheres vítimas de violência doméstica em quarentena, prestando assistência médica, psicossocial e legal.

Outros espaços, como o criado pela Articulação de Mulheres Brasileiras (CFMEA) segundo a qual “Os espaços de organização da luta são os lugares onde nos apoiamos, nos formamos e buscamos proteção. Espaços para onde vamos quando sofremos algum ato de violência”. Para elas “os espaços organizativos são parte das estratégias de resistência, então eles devem possibilitar o autocuidado, amor próprio, a escuta, o reconhecimento mútuo e o cuidado entre nós. Precisam proporcionar o questionamento da ordem patriarcal que separa o pessoal do político e a experimentação de alternativas no sentido de sermos livres e para o Bem Viver”.

Em Brasília (DF), foi criado o portal Metrópoles que através de um projeto chamado Elas por Elas, pretende criar perfis de todas as vítimas de feminicídio no Distrito Federal. Fizeram isso em 2019, monitorando os casos ocorridos em Brasília e em suas regiões administrativas, a partir dos registros da Secretaria de Segurança, do Ministério Público, do Corpo de Bombeiros Militar e das polícias Civil e Militar e no final do ano foram publicados perfis de 33 mulheres assassinadas. O objetivo é dar visibilidade às violências de gênero, além das denúncias e a luta pelas respectivas punições.

Do ponto de vista legal, destaca-se a importância da lei Maria da Penha, sancionada pelo presidente Lula, no dia 7 de agosto de 2006, que prevê penas para cinco tipos de violência: moral, psicológica, patrimonial, física e sexual; a lei 13.104/2015 sancionada em 9 de março de 2015 pela presidenta Dilma Rousseff  estabelecendo  que o assassinato de uma mulher cometido “por razões da condição de sexo feminino”,  tem pena prevista de 12 a 30 anos de prisão e inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos e a lei 13.931, de 2003 e sancionada em 10/12/2019, que dispõe sobre a notificação compulsória por agentes de saúde em casos de suspeita de violências contra as mulheres.

No Rio Grande do Norte, pode se destacar a Lei sancionada no dia 30 de março de 2019 pela governadora Fátima Bezerra para o funcionamento 24 horas de uma Delegacia de Mulheres, assim como a Lei que Institui o Dia de Combate ao Feminicídio (15 de julho) e o projeto de Lei Maria da Penha nas escolas (aulas sobre noções básicas em relação às leis de proteção às mulheres), iniciativas da deputada estadual Isolda Dantas (PT).

Uma das piores consequências das sistemáticas violências contra as mulheres é a sua “naturalização”. No artigo pedagogías de La crueldad: El mandato de La masculinidad (fragmentos), publicado na Revista de La Universidad de México em novembro de 2019, Rita Laura Segato se refere à exploração sexual e violência contra as mulheres “cuja repetição produz um efeito perverso de ‘normalização’, uma crueldade pode levar a desensibilização ao sofrimento dos outros”.

Para ela “as relações de gênero e o patriarcado jogam papel relevante e que a masculinidade está mais disponível para a crueldade porque a socialização o obriga a desenvolver uma afinidade significativa entre masculinidade e guerra, entre masculinidade e crueldade e masculinidade e distanciamento, entre masculinidade e baixa empatia”. E isto a leva a pensar que os homens devem entrar na luta contra o patriarcado, mas que devem fazê-lo não apenas para proteger as mulheres da violência de gênero, mas por eles mesmos, para libertar-se do imperativo da masculinidade e suas consequências.

A luta por justiça, direitos e igualdade não tem gênero. Como diz Rebecca Solnit, no livro Os homens explicam tudo para mim (Cultrix, 2017), metade da humanidade continua sendo perseguida, explorada e muitas vezes exterminada por essa violência tão difundida, uma violação inaceitável de direitos humanos mais elementares, que é o direito à vida,  portanto, é fundamental confrontar a base dessa violência, a sociedade capitalista, patriarcal, machista e misógina, na qual a cultura do estupro faz a culpa ser transferida do agressor para a vítima, que violenta, silencia, ignora e exclui as mulheres como pessoa livre com direitos inalienáveis. O feminicídio, é o último estágio da violência, daí a importância de se criar mecanismos eficazes para reagir coletivamente e não permitir que se menospreze, humilhe e desconsidere as pessoas em geral e as mulheres em particular, usando a violência como um dos seus principais instrumentos.