Fotografia 3×4 da realidade política brasileira 

David Soares de Souza –

A Política, assim como a História, é constantemente reduzida às ações individuais de determinados personagens. São hegemônicas as narrativas que indicam que a Independência do Brasil foi uma ação de Dom Pedro I; a Abolição, uma decisão da Princesa Isabel ou a Consolidação das Leis do Trabalho , obra e graça de Getúlio Vargas. Personagens importam, é verdade, e suas ações ajudam a compreender o contexto nos quais se inserem. Porém, personagens individuais são como frutos de uma árvore. Para uma boa análise devemos observar todo o conjunto, desde as raízes.

É neste sentido que podemos verificar que o uso sem critério do conceito de nação cumpre um papel ideológico de homogeneizar realidades díspares e interesses conflitantes. O “Brasil acima de todos” de Bolsonaro e o “Brasil, ame-o ou deixe-o” da ditadura militar, objetivam submeter o conjunto da sociedade a um projeto político no qual divergências devem ser reprimidas. Ao invés de uma sociedade que inclua seu povo na construção de soluções para seus próprios problemas, o conceito de “Brasil” é usado para tentar submeter e subjugar parte do povo brasileiro. 

Todavia, o conhecimento através das aparências e da ideologia costuma não ter imunidade à realidade. Em 1976 cantava Belchior: “A minha alucinação é suportar o dia a dia/ E meu delírio é a experiência com coisas reais”. Como cada pessoa consegue morar, vestir, comer, se divertir, se comunicar, se deslocar e pagar suas contas são questões objetivas e diretamente relacionadas ao modo como o conjunto da sociedade se organiza. 

Estamos falando de classes sociais. Ou será que a experiência de ser parte deste país para uma mulher negra e pobre é a mesma de um homem rico e branco? É a partir destes pressupostos que propomos uma fotografia 3×4 da realidade política brasileira. Ou, como se comportam e se expressam politicamente, neste momento, suas classes sociais. 

A classe dominante brasileira, em seu conjunto, no contexto resultante da crise econômica mundial de 2008, construiu uma unidade desde meados da década passada. Esta unidade interna se expressa no alinhamento automático do Brasil aos interesses dos Estados Unidos, na consolidação do país como agroexportador, na redução do parque industrial e do tamanho do Estado em sua relação com a sociedade. Conforme veremos, existem fissuras neste bloco que transcendem suas frações de classe e que podem ou não desembocar em consequências políticas. Porém, neste momento podemos fotografar duas políticas oriundas da elite econômica nacional.

A primeira delas indica o apoio ao bolsonarismo. Afinal, por que romper com o governo se ele está entregando o que desejavam? A extrema-direita defende sem pudores as políticas impopulares fundamentais para a manutenção e reprodução das taxas de lucros das grandes riquezas. É aquele pessoal que se afirma liberal na economia e conservador nos costumes. No entanto, observem que as tensões para este setor amplificam-se com a mudança de rumos no governo dos Estados Unidos. 

Temos uma segunda política na classe dominante. Esta almeja ser uma alternativa ao bolsonarismo sem o petismo ou lulismo. Ao mesmo tempo, pretende ser uma alternativa ao lulismo e ao petismo, sem o bolsonarismo. Estamos falando do setor que foi dominante no sistema político nas últimas três décadas. Eles não expressam um “centro democrático”. Na verdade são a direita neoliberal que polarizou a política nacional de 1994 até 2014, perdendo este espaço para a extrema-direita, igualmente neoliberal, a partir de 2018. Em síntese, divergem do bolsonarismo em seus métodos, mas têm grandes convergências com os seus fins. 

Os editorais das grandes empresas de comunicação irão expressar estas divergências no interior da classe dominante. Ainda tentam criar um nome viável para a próxima disputa presidencial. E há nomes tentam se efetivar como alternativa para este setor da elite que ao mesmo tempo é antipetista e antibolsonarista. Porém, vale destacar, pode surgir um segmento sinalizando para um eventual apoio a uma candidatura de esquerda, desde que permaneça intacta a macroeconomia construída nos últimos anos. 

Em seguida, temos a classe média, composta por altos funcionários de carreira de Estado, profissionais liberais, atividades bem remuneradas e com alta qualificação e pequenos e médios empresários. A classe média detém dilemas políticos semelhantes às demais classes sociais, mas sem potencial para polarizar enquanto classe. Afinal, em nossa fotografia a polarização real se dá entre grandes capitalistas e massas de trabalhadores. A classe média, no entanto, tem grande poder de mobilização e muitas vezes exercerá um papel pendular, decidindo crises políticas e sociais. Partidos com forte base nos setores, sejam de esquerda ou de direita, tendem a replicar a agenda política que dialogue com este segmento. 

Na classe média poderemos encontrar apoio ao bolsonarismo, apoio às políticas da direita neoliberal e apoio às políticas de esquerda, identificadas com a classe trabalhadora. Recentemente, este setor era a caixa de ressonância do lavajatismo, replicando o que foi o udenismo. O sentimento das camadas médias é aquele de quem paga impostos e não vê retorno, precisando onerar ainda mais seus dividendos para manutenção de seu padrão de vida, notadamente em gastos com educação, saúde e níveis de consumo.

Em crises econômicas a classe média tende a se proletarizar e desta forma tanto podem migrar para a base da extrema-direita, como podem fortalecer políticas mais à esquerda, identificadas com a classe trabalhadora, a depender das condições de disputas ideológicas colocadas na agenda política do país. 

Finalmente, temos a classe trabalhadora. Grande base piramidal de qualquer sociedade capitalista, a nossa classe trabalhadora também enfrenta suas contradições. Apresentamos a seguir ao menos três políticas presentes no interior deste segmento.

A primeira expressa aquele setores que aderiram à extrema-direita. Aqui as igrejas neopentecostais jogam um papel muito importante. Aliás, não à toa, é neste grupo social que Jair Bolsonaro tem os seus mais altos índices de aprovação e aceitação. Mas, os neopentecostais não são as únicas portas de acesso da extrema-direita à classe trabalhadora. Há grandes massas de assalariadas despolitizadas e que aderiram e que têm como suas referências políticas projetos de direita ou extrema-direita.  

Aqui, vale destacar, há uma fatura a ser paga por um modelo de desenvolvimento e inclusão social quem entre 2002 e 2014 melhorou o padrão da vida e de consumo da classe trabalhadora, mas não politizou esse processo. Afinal, não se faz disputa ideológica quando a opção é de conciliação. Aquilo dá nisso. Os governos petistas não criaram uma nova classe média, mas melhoraram os padrões de consumo da classe trabalhadora que, em dada media, não se reconheceram nas ações de governo que resultaram em melhorias de suas condições materiais. Em síntese, a vida melhorou ou por que Deus abençoou ou por méritos pessoais. Estava pronta a fórmula da multiplicação dos pobres de direita. 

Há também os setores que querem trazer parte da elite e dos setores médios para uma política “boa praça” que insira os pobres no orçamento. Este segundo segmento é majoritário no interior da esquerda neste momento. Surge daqui a ideia de frente ampla com a burguesia, como se houvesse no país uma direita democrática e antineoliberal disposta a derrotar o bolsonarismo primeiro pare depois discutir um novo pacto social. 

O que acontece na prática é que este setor termina por ocupar um lugar vazio deixando pela inexistência de uma burguesia com projeto nacional. Ao fim das contas, esta política pode levar a uma situação pré-1989 quando a esquerda tinha como teto a condição de linha auxiliar de uma dos segmentos da burguesia nacional. 

Há ainda no interior da classe trabalhadora uma terceira política que entende que a necessidade de se derrotar a classe dominante em seu conjunto e se colocar como alternativa política. Este é o segmento que fará o debate interno na esquerda sobre sua política de alianças e seu programa. Aqui há a ideia de atrair segmentos da classe média ao invés de ir rebaixar o próprio programa. Esta atração se daria com uma política que contemple os dois setores, classe média e classe trabalhadora, a partir de desonerações tributárias e ampliação de serviços de educação e saúde de qualidade, para citar alguns exemplos. 

Nesta fotografia 3×4 identificamos o que podem ser as raízes da disputa política neste e nos próximos períodos no Brasil. É a partir destes setores que se dão as movimentações no sistema político e partidário. A realidade política brasileira tem pouquíssima tradição democrática e muitos pactos pelo alto. O único fato que pode provocar mudanças de fato é a partição política da classe trabalhadora com consciência de si, sem delegar para outras classes essa tarefa e lutando de forma autônoma por seus próprios interesses. Boas análises observam quais são as relações que as lideranças políticas têm ou estabelecem com as classes sociais.