Gênero e Religião: a luta das mulheres por equidade dentro do universo patriarcal (parte 2)

Na coluna passada abordamos uma importante questão: a presença das mulheres na academia em um país patriarcal, sistema social no qual predominam as funções de liderança masculina que é historicamente predominante no mundo. Para não cometer injustiças e também como forma de complementar as informações, resolvi compartilhar com vocês um pouco mais sobre esse universo e sobre as referências brasileiras nele. Por isso, vamos abordar na coluna de hoje dois nomes imprescindíveis na luta por equidade social, política e de gênero: Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. Duas grandes intelectuais brasileiras que precisamos conhecer!

Lélia Gonzales foi uma intelectual e ativista foi pioneira nas discussões sobre relação entre gênero e raça, ao propor uma visão afro-latino-americana do feminismo. Lélia  atuou nas discussões sobre a Constituição de 1988 e integrou o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, na mesma década. Sobre ela Angela Davis, ícone do feminismo negro norte-americano, ao visitar o Brasil em 2019, afirmou: “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”.

O pensamento da autora pode ser acessado na coletânea Por um feminismo afro-latino-americano que abrange ensaios acadêmicos, artigos para a grande imprensa e jornais alternativos, entrevistas e registros de palestras em diversos congressos internacionais, sendo uma filósofa muito lida entre os intelectuais negros, e parte da produção tendo circulado em outras publicações acadêmicas e independentes, constituindo, portanto, uma grande  referência para academia, inclusive  a filósofa e educadora Sueli Carneiro, referência no feminismo negro, é uma grande admiradora do trabalho de Gonzalez.

Consciente da contribuição dos povos negros e indígenas para a identidade cultural brasileira, Lélia afirmava que a cultura brasileira é negra por excelência e por isso o português que falamos é, em verdade, o “pretuguês”, uma mistura de kimbundu com ambundo, ou seja, do português de Portugal com línguas africanas.

Um outro conceito criado por Lélia é a de Amefricanidade, “que se insere na perspectiva pós-colonial, surge no contexto traçado tanto pela diáspora negra quanto pelo extermínio da população indígena das Américas e recupera as histórias de resistência e luta dos povos colonizados contra as violências geradas pela colonialidade” (Novo Mundo foi inexistente: a preponderância se deu com elementos ameríndios e africanos” (CARDOSO, 2014, p. 969). A filósofa, historiadora e antropóloga ainda defendia uma defendia uma Améfrica Ladina por entender que “a presença da ‘latinidade’ no Novo Mundo foi inexistente: a preponderância se deu com elementos ameríndios e africanos” (CARDOSO, 2014, p. 969).

Outra grande intelectual brasileira que precisa ser destacada é a filósofa e educadora Sueli Carneiro, conhecida em todo mundo por sua militância feminista e antirracista. É co-fundadora e diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, fundado em 30 de abril de 1988, constituindo-se  como uma organização da sociedade civil que se posiciona em defesa de mulheres e negros e contra todas as formas de discriminação que limitam a realização da plena cidadania, como a lesbofobia, a homofobia, os preconceitos regionais, de credo, opinião e de classe social.

“A fundação do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser” é o título da tese de doutorado em Filosofia da Educação na FFLCH – USP, onde analisa conceitos de Dispositivo e Biopoder de Michel Foucault para compreender as relações raciais no Brasil. A partir disso, ela constrói a noção de dispositivo racialidade/biopoder que busca dar conta de dois processos: 1) produção social e cultural da eleição e da subordinação raciais; 2) produção de vitalismo e morte informados pela filiação racial. A articulação destes dois processos, segundo ela, resulta no epistemicídio, conceito que vai além da morte da episteme, do conhecimento, tendo em vista que o conceito não se refere às epistemologias dominantes, as eurocêntricas, mas apenas àquelas que são subalternizadas na tentativa de silenciar, anular, e invisibilizar saberes não-hegemônicos, como é o caso das epistemologias negras e indígenas.

O termo epistemicídio foi utilizado largamente por Boaventura Sousa Santos, mas Carneiro (2005, p 97) vai no cerne da questão ao afirmar que é “uma forma de seqüestro da razão em duplo sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é imposta”, constituindo um processo persistente de produção da indigência cultural.

Em entrevista à Revista Cult em 2017, afirma que “a liberdade exige uma vigilância persistente, que a conquista de direitos é uma luta permanente” (CARNEIRO, 2017, p. 14), isso só mostra o quanto a leitura dos textos da autora é atual e necessária, além de mostrar, claro, o quanto desconhecemos nossa própria produção cultural. Tá na hora de tirarmos o véu das epistemologias impostas para olharmos para dentro, isso é um ato político! E pra encerrar o texto sobre essas brilhantes mulheres brasileiras, uma frase de Sueli Carneiro que traduz o epistemicídio dos mais de 500 anos de um Brasil colonialista e opressor: “Nós somos sobreviventes e somos testemunhas, porta-vozes dos que foram mortos e silenciados. Nós estamos aqui. A elite intelectual deste país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação: quanto tempo levaria para esta mancha negra ser extinta” (CARNEIRO, 2017, p. 17), mas nós estamos aqui e daqui não arredaremos.

 

Referências:           

CARDOSO, Cláudia Pons.  Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 22, n. 3, p. 965-986,  Dec.  2014 .   Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2014000300015&lng=en&nrm=iso. Acesso em 26 Mar. 2021.  https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300015.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005.Tese Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001465832 . Acesso em 26 Mar. 2021.

CARNEIRO, Sueli. Sobrevivente, testemunha, porta-voz. Revista Cult. Entrevista Bianca Santana. N° 223, ano 20, Maio 2017.

MERCIER, Daniela. Lélia Gonzalez, onipresente. São Paulo – 25 OUT 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-10-25/lelia-gonzalez-onipresente.html. Acesso em 25 Mar 2021;

PORTAL GELEDÉS. Disponível em: https://www.geledes.org.br/. Acesso em 26 Mar. 2021.