Gênero e Religião: a luta das mulheres por equidade dentro do universo patriarcal

Regina Negreiros –

A presença das mulheres na academia, ou a falta delas, é algo sintomático de um país patriarcal, sistema social no qual predominam as funções de liderança masculina que é historicamente predominante no mundo. Como estamos no mês de março, quando comemoramos, no dia 08, o dia internacional da mulher, resolvi abordar essa perspectiva para a nossa reflexão. Gostaria antes de alertar para o conceito do termo feminismo, tendo em vista que muitas pessoas acreditam, de forma equivocada, que é o feminismo a sobreposição da mulher em relação ao homem. Feminismo é, na verdade, um movimento que reivindica a igualdade política, jurídica e social entre homens e mulheres, a igualdade de gêneros! E como falei em patriarcado, esclareço que o matriarcado também não é o reverso do patriarcado. Goettner-Abendroth (2004) afirma que matriarcados são sociedades de parentesco, sociedades igualitárias, com um padrão social político que não permite acúmulo de poder, não havendo dominados ou dominantes, opressores nem oprimidos.

Feitos estes esclarecimentos, vamos fazer inicialmente uma observação a partir do eurocentrismo dentro do universo da filosofia. Na Grécia clássica o filósofo Platão descreve a mulher como dona de casa obediente ao marido. Aristóteles, seu discípulo, também assim a descreve e vai além ao afirmar que a mulher é propriedade do homem. Esse estigma da submissão da mulher ao homem, portanto, é bem antiga no mundo ocidental.

No continente africano o patriarcado não foge à regra e raras são as mulheres que se destacam na construção do pensamento, embora estas muito tenham contribuído. Prevalecem os autores do sexo masculino, assim como na Europa e nas Américas, a diferença, na minha percepção, é que estes buscam a equidade entre os seres humanos e não-humanos, entre homens e mulheres, entre brancos e negros, numa perspectiva biocêntrica[1], através do Ubuntu, termo utilizado na filosofia africana relacionado à humanidade, cooperação, respeito, acolhimento, generosidade,  alteridade, onde as ações buscam o bem estar de todos à nossa volta. Uma ética disposta na empatia e na coletividade.

Segundo Desmond Tutu (2004), “Ubuntu é a essência de ser uma pessoa. Isso significa que somos pessoas através de outras pessoas. Nós não podemos ser totalmente humanos sozinhos. Somos feitos para interdependência, somos feitos para a família”. Ele relaciona ubuntu com interconectividade, fraternidade, compaixão e abertura do espírito para a existência, de forma que o conceito se afirma como uma teologia que se opõe à violência e que tem no perdão o único caminho para a justiça e o equilíbrio.

Essa busca por equidade e por um humanismo que preza pelo coletivo traz importantes pilares, apesar do predomínio masculino. No continente africano algumas mulheres se destacaram, embora não com a mesma ênfase que os homens, dentre elas: Sophie Oluwole, pioneira na filosofia africana e na Nigéria, a primeira a obter um PhD no assunto. Faleceu aos 83 anos, e lutou até a morte para superar o sexismo institucionalizado e socialmente enraizado. Em 2015 ela publicou “Sócrates e Orunmila: Os dois patronos da filosofia clássica”, comparando os filósofos que moldaram o trabalho de sua vida.

Além de Oluwole, destaco Marie Pauline Eboh e Fatma Haddad-Chamakh. Marie Pauline Eboh prioriza em seus trabalhos as necessidades dos jovens e mulheres do Delta de Niger, “buscando a união de um pensamento e investigação filosófica com uma práxis humanista” (DAIELLO; AZEVEDO et al, 2007). Ela questiona o estatuto epistemológico da filosofia e seu papel social na atualidade, investigando “a forma africana de pensar e sentir, bem como os valores estabelecidos pela cultura africana ao longo de sua história” (DAIELLO; AZEVEDO et al, 2007).

Essas são mulheres estão quebrando os paradigmas do patriarcado, do racismo e da misoginia. Outras mulheres, em várias partes do mundo, também fazem nesse trajeto, dentre elas, no Brasil, Djamila Ribeiro e Katiuscia Ribeiro.

Djamila Ribeiro é filósofa, feminista e negra. Ela marca bem esse lugar como sendo o seu “lugar de fala” – obra recente publicada por ela. Para a autora, “não dá pra pensarmos as categorias de formas isoladas (…) porque raça indica classe. E o racismo cria uma hierarquia de gênero, colocando a mulher em uma posição desfavorável (…) não dá pra pensar de forma separada” (RIBEIRO, 2016).

Katiúscia Ribeiro Pontes, também filósofa, negra e feminista, especialista em filosofia africana. Para ela é importante a reconstrução identitária que foi violentada é um epistemicídio diaspórico, de forma que, “repensar essa narrativa passa necessariamente por se compreender como mulheres africanas renascidas em Diáspora, que nossa condição de mulheres “brasileiras” é fruto desse processo colonial” (RIBEIRO PONTES, 2016).

Um dos mais renomados autores da filosofia africana, Cheik Anta Diop, autor de  “The cultural unity of Black Africa – the domains of patriarchy and of matriarchy in classical antiquity” (1989), evidencia a diversidade no continente africano e afirma que sua base está na  organização matriarcal da antiguidade clássica. Para ele, o continente africano “foi um dos berços de desenvolvimento da organização matriarcal, sendo o patriarcado introduzido apenas com a penetração do islamismo no continente” (OLIVEIRA, p. 318, 2018), no entanto ele defende que o islamismo não penetrou profundamente na base do sistema matriarcal.

As religiões afro-diaspóricas como o candomblé tem  base matriarcal. As mulheres desempenham importantes e fundamentais papéis, dentre eles, os de Ialorixás, as conhecidas mães de santo, apesar de hoje em dia ter se propagado a figura do babalorixá, o pai de santo. Dentre os principais orixás cultuados no Brasil, temos as Yabás, Orixás femininas, das quais as mais conhecidas são: Iemanjá, Oxum, Iansã, Nanã, Obá e Euá. O candomblé nasceu através das irmãs Iyá Akalá, Iyá Adetá e Iyá Nassô, nomes preservados pela tradição oral, que teriam migrado para o Brasil e fundado na Bahia a “Casa Branca”, o mais antigo templo de culto africano do país.

Diferentemente da mulher submissa e coadjuvante que se vê no cristianismo, no panteão do candomblé as yabás são guerreiras, poderosas e donas de si, mulheres empoderadas cujos arquétipos são refletidos nas características e personalidades dos filhos que tem por regência, por “orixá de cabeça”.  Mas pensar o feminismo nas religiões afro-brasileiras não significa dizer que o Candomblé seja uma tradição religiosa pautada pela perspectiva revolucionária da ausência do patriarcado, afinal, o candomblé se estabeleceu em um país cuja cultura patriarcal e eurocêntrica é hegemônica, e claro que isso influenciou na história e na estruturação do candomblé no Brasil, no entanto, as mulheres negras escravizadas no Brasil trouxeram consigo o espírito de resistência e de luta, e de tal forma, deram continuidade ao culto de seus ancestrais africanos, ressignificando a forma de cultuar, reunindo as diferentes nações em um mesmo espaço sagrado.

Essas mulheres quebraram a ordem vigente de uma sociedade predominantemente patriarcal cristã e seguem fortes e empoderadas, influenciadas pela ancestralidade, pelo Ubuntu e pela força das Yabás, ocupando espaços dentro e fora das academias, inclusive dentro do universo patriarcal e eurocentrista da filosofia tradicional no ocidente.

 

Referências:

DAIELLO, Angélica W.F.; AZEVEDO, Daniela Grillo de; RODRIGUES, Cíntia Luzardo; GRILLO, Rute dos Santos; BARROS, Taís Moraes; PASQUALOTTO, Terezinha Lorena; SILVA, Ursula Rosa da. Filosofia na África: mulheres pensadoras. Disponível em https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/ang%C3%A9lica_daiello_et_al._filosofia_na_%C3%81frica._mulheres_pensadoras.pdf. Acesso em 11 nov 2019.

RIBEIRO PONTES, Katiuscia. Mulher Preta: Mulherismo Africana e outras perspectivas de diálogo. 2016. Disponível em https://almapreta.com/editorias/o-quilombo/mulher-preta-mulherismo-africana-e-outras-perspectivas-de-dialogo. Acesso em Acesso em 11 nov 2019.

GOETTNER-ABENDROTH, Heide. Matriarchal Society: Definition and Theory. Published in The Gift, A Feminist Analysis. Athanor book, Meltemi editore, Roma 2004. Disponível em http://wunrn.com/wp-content/uploads/013106_matriachial_society.pdf. Acesso em 12 Jan. 2021.

OLIVEIRA, Fernanda Chamarelli de. O matriarcado e o Lugar social da mulher em África: uma abordagem afrocentrada a partir de intelectuais africanos. Odeere: Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB. ISSN: 2525-4715 – Ano 2018, Volume 3, número 6, Julho – Dezembro de 2018. Disponível em:  https://doi.org/10.22481/odeere.v3i6.4424. Acesso em 15 Jan. 2021

TUTU, Desmond. Receita de Desmond Tutu para a paz. Disponível em <https://www.beliefnet.com/Inspiration/2004/04/Desmond-Tutus-Recipe-For-Peace.aspx?p=2>.  2004. Acesso em 11 jan. 2019.

KAKOZI, Jean Bosco. Filosofia africana: a luta pela razão e uma cosmovisão para proteger todas as formas de vida. 2018. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/05/filosofia-africana-a-luta-pela-razao-e-uma-cosmovisao-para-proteger-todas-as-formas-de-vida/. Acesso em 02 jan. 2019.

[1] Conforme Jean Bosco Kakozi (2018), Filósofo congolês, é uma ética contrária ao antropocentrismo, baseada na preocupação com o outro e principalmente no respeito para com os animais não-humanos, estando sempre voltada para fortalecer, cuidar, gerar e transmitir a vida, respeitando todos os seres vivos, humanos e não humanos e tratando os ancestrais como elo de ligação entre os vivos, os mortos e os que ainda não nasceram. É uma concepção oposta ao antropocentrismo, pois todas as formas de vida são igualmente importantes.