He-Man, a nossa nostalgia e a política brasileira

Sabendo que eu era um grande fã na infância, há alguns dias um primo me contou que o desenho animado He-Man será relançado pela Netflix e Mattel Television, informação que me despertou sincero interesse. A nova série “Mestres do Universo – Salvando Eternia” está com lançamento previsto para 23 de julho deste ano e terá cinco episódios, com roteiro e visual inspirados na primeira versão dos anos 1980.

No entanto, o retorno de He-Man me fez pensar em como nossa sociedade tem procurado trazer o passado para o presente. Nos últimos tempos, desde antes da pandemia, a TV aberta vem usando e abusando de remakes. Na moda, é frequente a releitura de estilos do passado. Na decoração, produtos do passado foram ressignificados e voltaram a fazer parte de nossos ambientes de convivência, a exemplo da máquina de escrever, máquina de costura, telefone com fio, etc. 

O nosso presente hi-tech valoriza conceitos como “vintage” e “retrô”. Gostar do que é antigo torna-se algo moderno, descolado, com personalidade e estilo. Aliás, qual foi a última vez que você ouviu a expressão “pós-moderno”?  O mercado já entendeu isso e apresenta produtos que vão de geladeiras com estética antiga até vitrolas, para se ouvir os antigos LP’s e fitas K7, embora tudo com muita tecnologia embutida.  

Nem o paisagismo escapou. Aquelas plantas com jeitão de “casa-de-avó”, como samambaias, espadas-de-são-jorge e alfinetes, voltaram a ocupar as varandas dos nossos modernos apartamentos. Não faltam canais no Youtube que produzem muito conteúdo sobre o passado. Músicas, publicidade, televisão, cinema, história em quadrinhos, bens de consumo, hábitos, tudo é motivo de interesses de nossa nostalgia. Somos a sociedade que procura saber “como era antigamente”.  

Talvez, ressaltando que isto é apenas uma hipótese, uma sociedade em constante crise procure no passado uma segurança que não encontra no presente. Ou quem sabe não estamos vivendo um esgotamento de uma sociedade “heraclitiana”, baseada em relações de consumo e repleta de “museus de grandes novidades” como cantou Cazuza e na qual “tudo muda o tempo todo no mundo”, como canta Lulu Santos?  

O fato é que, parece ser mais fácil querer o passado de volta do que olhar para o desconhecido e construir o futuro. Isto, por si só, é uma grande vitória ideológica do capitalismo. Como alerta o filósofo e crítico cultural Mark Fisher, em “Realismo capitalista”, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Quantos filmes apocalípticos o cinema já produziu? Aliás, conseguimos até imaginar um mundo com dinossauros, mas não um mundo sem capitalismo, não é? 

O capitalismo ainda não tem nem metade do tempo de existência do modo de produção que o antecedeu, o feudalismo. Este dado é importante para ponderar a “Síndrome de Gabriela” que existe no debate econômico e que se apropria dos versos de Dorival Caymmi para dizer “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou sempre assim”. Na Política não seria diferente. A grande maioria das correntes políticas propõe um passado pela frente. 

Tendo as incompatibilidades entre a democracia e os interesses das grandes riquezas como signo, ressurge com muita força a extrema-direita neofascista (peço desculpas pela redundância), defendendo o retorno ao regime ditatorial na forma de governo e o retorno aos anos 1920 nas relações econômicas do Brasil com o mundo, quando éramos, no máximo, uma nação agroexportadora e sem direitos trabalhistas consolidados. 

Não é de se estranhar que alguns setores da extrema-direita, do ponto de vista das relações de trabalho, possam desejar o retorno a 1887. Afinal, esta corrente política é guiada por uma visão do mundo anterior à Revolução Francesa de 1789. Esse papo de igualdade, liberdade e fraternidade é moderno e científico demais para esse pessoal. 

Também temos uma direita neoliberal, que recentemente passou a ser apresentada como “Centro” por analistas e pelos editoriais das grandes empresas de comunicação do país. Este setor é saudoso dos anos 1990. Nesta década, conseguiam vencer as esquerdas por via eleitoral e implementavam todo o pacote de reformas favoráveis apenas ao mercado e contra a soberania nacional, sem precisar conviver com lideranças políticas xucras e toscas. Este grupo ainda teve um breve “revival” durante o golpe que promoveu o governo Temer. 

Porém, até na esquerda o passado tem um forte apelo. As esquerdas em todo o mundo foram fortemente afetadas pela vitória do capitalismo na Guerra Fria. Se antes defendiam mudanças estruturais na forma como as sociedades deveriam se organizar, passaram, majoritariamente, a defender melhorias nas condições de vida por meio de políticas públicas. Porém, nem mesmo este rebaixamento de teto consegue resolver as contradições entre mercado e democracia.

Com o retorno do ex-presidente Lula à cena política, após se tornar insustentável a narrativa da finada operação Lava Jato, as forças democráticas voltaram a ter esperança e as esquerdas voltaram a se colocar como alternativa política para o conjunto do país. E muitos e muitas sonham com uma reedição de ano 2002 vinte anos depois. Mas, seria possível atingir os mesmos resultados políticos dos governos petistas sem desfazer as maldades institucionais como reforma trabalhista, previdenciária, EC 95, entre outras? 

Que haja gente nas esquerdas sonhando dia e noite com nova conciliação de classes, não tenho dúvidas.  Resta saber se a disposição da classe dominante para a conciliação é a mesma ou se querem terceirizar para as esquerdas o seu programa, mantendo intacta a agenda econômica sob o pretexto de preservar a democracia, até que consiga criar uma liderança e governarem diretamente. 

Quem quiser ouvir músicas antigas poderá se deparar com Belchior que cantou que “o passado é uma roupa que não nos serve mais” e que quem ama o passado não vê que “o novo sempre vem”. Então, se há quem defenda o que há de mais horrendo na humanidade, como a tortura, o extermínio, o racismo, machismo, LGBTfobia e todas as formas de opressão e preconceito, precisamos construir um polo que seja o extremo oposto a tudo isso e não um “caminho do meio” que dialogue com o obscurantismo. 

Não podemos deixar de defender o que há de mais belo: uma sociedade onde não haja exploradores e explorados, onde cada ser humano possa vivenciar suas potencialidades, respeite e seja respeitado, tenha dignidade e liberdade plena. Gosto de chamar isso de socialismo, um modelo que a humanidade já tentou e ainda não conseguiu viver. Se há quem sonhe com dinossauros, gosto de sonhar com uma nova sociedade, que está no futuro e não no passado. 

Finalmente, relembrando He-Man, em um de seus conselhos no final de um dos episódios dos anos 1980, ele dizia que não podemos voltar ao passado, mas aprender com ele. Assim, grifo meu, poderemos construir o futuro que queremos desde agora, no presente.