Intolerância Religiosa: por que devemos combatê-la?

No dia 12 de janeiro do corrente ano uma mulher indígena do grupo guarani-kaiowá foi espancada por cinco fundamentalistas religiosos que a acusavam de bruxaria. A queixa foi registrada em uma delegacia em Amambaí, município brasileiro da região Centro-Oeste, situado no estado de Mato Grosso do Sul. A caça às “bruxas” era prática do “Santo Ofício” no período medieval, tendo início no século XV, e o alvo das perseguições religiosas e político-sociais eram as mulheres que não se submetiam ao patriarcalismo, mulheres fortes e que desafiavam as normas de condutas estabelecidas pela igreja em conjunto com os governantes. As mulheres que insurgiam contra o status quo, que eram independentes, inteligentes e habilidosas, que representavam resistência, rebeldia e lutavam por igualdade e justiça social, foram alvo desse genocídio feminino pelo patriarcado.

Condutas medievais e fundamentalistas como esta, por mais absurdas que pareçam, não são isoladas. Os casos de intolerância religiosa registrados via Disque 100, número de telefone do governo criado em 2011 para receber denúncias de violações de direitos humanos, aumentaram absurdamente. Só no primeiro semestre de 2019 foram 2.722 registros, um aumento de mais de 56% em relação ao ano anterior, a maioria deles contra adeptos de religiões de matriz afro-brasileira. É importante ressaltar que muitas pessoas não denunciam por medo de retaliações; outras, por desconhecimento total da existência do serviço, já que o atual governo não realiza campanhas e não faz nenhum tipo de política pública para publicizar o Disk 100 e tentar frear os crimes de intolerância previstos no Artigo 208 do Código Penal Brasileiro e que tem ceifado vidas e oprimido pessoas.

O dia 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data é de fundamental importância, principalmente na atual conjuntura, para marcar a luta pelo enfrentamento ao preconceito e ao racismo religioso tão frequentes quando se trata das religiões de matriz afro-brasileira. No atual cenário político do desmonte das políticas públicas voltadas às questões sociais, de inclusão e das pautas referentes à diversidade religiosa e de gênero, o debate é necessário e urgente.

A data, instituída em 2007 pela Lei nº 11.635, de 27 de dezembro, é uma homenagem à Yalorixá Gildária dos Santos, a Mãe Gilda, do Axé Abassá de Ogum, vítima de inúmeras agressões, verbais e físicas. Ela morreu em 21 de janeiro, em decorrência de mais um caso de intolerância religiosa. A celebração da data, portanto, é um apelo às religiões para uma reflexão sobre as tradições e crenças celebradas de forma que essa reflexão sirva para fomentar o respeito às diferenças e combater a intolerância. Só assim é possível preservar os direitos e garantias individuais conforme reza a Constituição brasileira no artigo 5º, VI, que determina que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Na Paraíba a data conta, neste ano de 2021, com algumas atividades  online, dentre elas o “Café da Diversidade Religiosa”, promovido pelo Videlicet/UFPB e o webnário intitulado “A situação do ensino religioso no Brasil”. O evento vai ser transmitido pelo facebook nas contas Renadir.BR e URI Brasil, e vai contar com a participação de representantes de instituições de várias partes do país para marcar a Semana de Combate à Intolerância Religiosa, e reúne a Frente da Diversidade Religiosa PB e grupos locais que dela fazem parte, como é o caso do Centro Acadêmico das Graduações em Ciências das Religiões da UFPB e da Coordenação de Diversidade Religiosa do Diretório Central dos Estudantes da UFPB. Também participam diversas lideranças religiosas e do Ensino Religioso laico. As atividades ocorrerão de forma conjunta e online devido à pandemia da Covid-19.

Além dessas atividades, o Centro de Referência de Igualdade Racial João Balula divulgou que realizará presencialmente dia 20, em parceria com a Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana/PB (SEMDH), respeitando as orientações de segurança sanitária, uma reunião com a Federação Cultural Paraibana de Umbanda, Candomblé e Jurema (FCPUMCANJU) com o objetivo de fortalecer a rede de combate ao racismo e à intolerância religiosa na Paraíba. Outro registro do Centro de Referência e da SEMDH é a realização, neste dia 21, de um webinário Diálogo e Resistência: religiões unidas em favor da liberdade e diversidade religiosa na Paraíba. Haverá ainda uma “live” sobre intolerância religiosa e os mecanismos para o seu enfrentamento. Estas atividades são de suma importância para dar visibilidade à luta!

Apesar de a data se referir ao Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e homenagear a Yalorixá Gildária dos Santos, não há grande movimentação  por parte dos terreiros de religiões de matriz afro-brasileiro e afro-ameríndia no sentido de celebrá-lo ou mesmo de divulgá-lo entre seus seguidores para fortalecer o combate ao racismo religioso e a intolerância, tão presente nesses tempos soturnos de crescente perseguição aos terreiros e ao Povo de Santo, se resumindo muito a atividades acadêmicas e institucionais no estado da Paraíba.

E por que precisamos desta data? Primeiramente porque é importante afirmarmos nossa identidade, lembrarmo-nos de onde viemos, quem somos e para onde queremos ir; é importante lembrar a história, revisitá-la! E o Brasil é uma imensa colcha de retalhos onde a diversidade e a pluralidade se fazem presentes no nosso cotidiano, e com elas, há gigantes retalhos da cultura e da religiosidade afro-brasileira, por isso, histórias como a da diáspora africana devem ser lembradas para que não sejam repetidas jamais! E esse é um dos motivos pelos quais os terreiros deveriam dar visibilidade a esse dia de luta, observando-se que, pelo menos em tese, somos um Estado Laico.

Celebrar o Dia 21 de Janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa –, portanto, é lutar pela garantia de uma isonomia social, de igualdade de direitos e garantias individuais e coletivas, preservando o estado democrático de direito, rompendo com quaisquer lampejos de estruturas totalitárias que não reconheçam as minorias, as diferenças, a pluralidade e a diversidade humana, garantindo assim a dignidade da pessoa humana, fortalecendo a sociedade justa, plural e igualitária, conforme consta na nossa Constituição Federal.

É necessário provocar a reflexão e o empoderamento das chamadas minorias,  ao tempo em que se propaga a cultura de paz, para chegarmos ao lugar de igualdade e justiça social, cortando como quilhas o mar agitado da adversa sociedade para reconstruí-la sobre os pilares da equidade. Como diz o poeta russo Maiakoviski: “não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas”.

Cada indivíduo tem seu papel fundamental, seu lugar na história que, dinâmica e hibridamente se constrói e se reinventa, costurada com cores e mãos diversas, reafirmando valores, rompendo paradigmas e buscando novos diálogos e novos laços de solidariedade para com-vivermos em paz. Urge que reforcemos a luta no combate às intolerâncias que violentam, matam e corroem a democracia e, sobretudo, a humanidade existente em cada um de nós.

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REFERÊNCIAS:

JORNAL BRASIL DE FATO. Neopentecostais torturam índios por questões religiosas no Mato Grosso do Sul: Mulheres são chamadas de bruxas e feiticeiras por grupo recém-convertido. Disponível em: https://revistaforum.com.br/noticias/neopentecostais-torturam-indios-por-questoes-religiosas-no-mato-grosso-do-sul/?fbclid=IwAR2KsAIvHzvecNeJ_H8LsL5JUEus4de5-U9-Ljl4y1iyNhpuhX-sM0WJQ8I. Acesso em 18 Jan. 2021.

NEGREIROS, Regina; LOPES, Carolina Trindade. Diversidade Étnica e Religiosa no Brasil: desafios para uma cultura de paz. In.:VILMAR, Baggio (org). DNA Educação. Vol. 5. 2 ed. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2019.

SOUZA, Marina Duarte de. Denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019. Jornal Brasil De Fato. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019. Acesso em 18 Jan 2021.