James Hillman e a psicologia de cultivo da alma
Na coluna de hoje vou fazer um passeio por uma área da qual não faço parte, mas me senti provocada por uma leitura agradável, que me presenteou com novas e interessantes perspectivas sobre o cenário que vivenciamos hoje do ponto de vista político, religioso e social. A leitura da qual falo é da obra do escritor James Hillman, intitulada re-vendo a psicologia. Que os psicólogos leitores me perdoem o atrevimento!
James Hillman reconhece a alma como uma potência múltipla com capacidade de ampliar os horizontes e, entendendo que a alma não pode ser compreendida apenas pela psicologia, ele se move através da história, da filosofia, da religião. Para ele, a tarefa da psicologia é “oferecer um caminho e encontrar um lugar para a alma dentro de seu próprio campo” (HILLMAN, 2010, p. 26) e a alma seria “uma perspectiva sobre as coisas em vez de uma coisa em si” (HILLMAN, 2010, p. 27), atuando de forma reflexiva e mediando os eventos, fazendo diferenças entre nós e os acontecimentos: “Entre aquele que faz e o que é feito há um momento reflexivo e o cultivo da alma significa esse chão intermediário” (HILLMAN, 2010, p. 27).
Mas o autor vai mais além ao falar dessa alma. Para ele, a alma é intangível e indefinível, mas possui predicados e de tal modo, Hillman afirma que, “por ‘alma’ refiro-me à possibilidade imaginativa em nossa natureza, o experimentar através da especulação reflexiva, do sonho, da imagem, da fantasia – aquele modo que reconhece todas as realidades como primariamente simbólicas ou metafóricas” (HILLMAN, 2010, p. 28), a alma, portanto, é uma constituição psicológica.
Outra dimensão psicológica é a da personificação. A palavra pode assumir uma consciência ao personificar-se, o que é fundamental para a experiência da psicologia arquetípica. A personificação sempre teve sua importância na imaginação religiosa e poética, e confina em si a ideia de subjetividade nas pessoas humanas que trazem consigo a ideia cristã do homem como “verdadeiro foco do divino e única portadora de alma” (HILLMAN, 2010, p. 39). Essa visão se desdobra na individualidade da alma que só pode ter um único corpo. E assim a psicologia que deriva do termo ‘psyche’, “refreou a alma de aparecer em qualquer lugar que não seja aquele sancionado por essa moderna visão de mundo” (HILLMAN, 2010, p. 41), de forma que fomos despersonificados pelo mundo, “fomos todos des-almados” (HILLMAN, 2010, p. 26) e “personificar é um modo de cultivar a alma” (HILLMAN, 2010, p. 26).
A cristianização removeu a personificação de tudo que era contrário ao monoteísmo pregado pelo cristianismo, de tudo que era plural e diverso. O termo personificação subtende que os humanos criam deuses à sua semelhança para retratar sua personalidade e assim padecem os cadáveres das diferenças, mortos pela intolerância resultante de uma imaginação perdida.
A multiplicidade da alma pode ser percebida em suas muitas e possíveis configurações. Segundo o filósofo grego Plotino, “a imaginação enxerga as imagens primordiais e estas se apresentam em formas personificadas” (HILLMAN, 2010, p. 65). Personificar é uma epistemologia do coração, pois o “amor personifica tudo que ama” (HILLMAN, 2010, p. 65). A alma reflete as experiências subjetivas que requerem compreensão e para “adentrar no mito, devemos personificar, devemos personificar. O personificar nos carrega para dentro do mito” (HILLMAN, 2010, p. 68).
A personificação ocorre o tempo inteiro, inclusive com nossas memórias. “A memória é o elemento que a imaginação pode tomar emprestado, a fim de fazer suas imagens personificadas perceberem-se completamente reais” (HILLMAN, 2010, p. 72). A descoberta da realidade psíquica por Freud foi um marco na psicologia, muito embora ele tenha usado métodos míticos para apresentar a sua psicologia, reduzindo a personificação natural do sonho a termos conceituais. Jung traz a personificação sob um olhar politeísta feminino e define a anima como uma personificação do inconsciente, a alma como um componente estrutural da personalidade.
As imagens são, portanto, o alimento de nossa alma, de forma que “engendrar alma requer sonhar, fantasiar e imaginar” (HILLMAN, 2010, p. 81). As imagens de fantasias estão estruturadas pelos arquétipos dos mitos. “Não somos seres únicos à imagem de um único Deus, mas somos sempre constituídos de partes múltiplas” (HILLMAN, 2010, p. 83), onde, cada um de nós, é um fluxo de figuras que formam uma personalidade múltipla.
Como forma de repressão dos arquétipos múltiplos que compõem nossa múltipla personalidade, o monoteísmo intervém através do mito cristão, da bíblia, mantendo a coesão e a regulação social através de “sermões que provocam a culpa” (HILLMAN, 2010, p. 90). Entendo que os arquétipos são as metáforas produzidas pelas almas como “padrões mais profundos do relacionamento psíquico” (HILLMAN, 2010, p. 33) e que “governam as perspectivas que temos de nós mesmos e do mundo” (HILLMAN, 2010, p. 33).
A personificação é uma “resposta da alma à egocentricidade” (HILLMAN, 2010, p. 97) e o sonho é uma forma de personificação que nos mostra os vários estilos de consciência presentes. No sonho vemos como um espelho as múltiplas personalidades que temos, além da dominante, a número 01. Lá encontramos nossa pluralidade, nossa consciência politeísta. Nessa estrutura a psique pode ser percebida como um cenário de imagens personificadas, o lugar policêntrico das imagens não verbais.
Os deuses são arquétipos do insconsciente personificados através dos mitos que oferecem o mesmo modelo de mundo. O monoteísmo da consciência que personifica a história cristã é uma psique egocêntrica que restringe o olhar plural por não admitir o politeísmo, já que tem uma fixação por uma unidade que nega a fragmentação e as múltiplas psiques, pois admiti-los ressignifica nossa consciência egóica e nossa ideia sobre Deus, “não mais nos encontraríamos a sos em nossa subjetividade” (HILLMAN, 2010, p. 113).
A anima é a pessoa da alma, uma projeção real arquetípica. Sua natureza é personificada e subjetiva, “é a personificação de nossa inconsciência pessoal” (HILLMAN, 2010, p. 115). Perder a alma é despersonificar-se! A anima é, portanto, algo a priori, no sentido kantiano, é a vida atrás da consciência. Ela “não é uma projeção, mas o projetor” (HILLMAN, 2010, p. 118). Para Hillman, “nós personalizamos a alma, enfiando-a toda no ser humano” (HILLMAN, 2010, p. 124). Ele afirma que os mitos, os deuses, são na verdade formações arquetípicas geradas pelas imagens que povoam nossa anima.
Hillman desconstrói a psicologia moderna por ela estar “envolvida com a construção do ego e não com o cultivo da alma” (HILLMAN, 2010, p. 124), expressando uma falácia personalista de experiências arquetípicas, criando a sensação de que, sob o domínio da anima, nos sentimos especiais, únicos.
O cultivo da alma é um trabalho da anima através das imagens. A personalidade, portanto, é uma persona através da qual a alma fala. A “anima me personifica, ou faz de si mesmo através de mim” (HILLMAN, 2010, p. 130). “O trabalho do cultivo da alma (soul-making) ocupa-se essencialmente da evocação da fé psicológica, a fé que brota da psique é puramente imagem (…) A fé psicológica começa no amor pelas imagens” (HILLMAN, 2010, p. 128).
As religiões, através de suas alegorias fantasiosas têm a habilidade de conter a psicopatologia. Quando uma religião se desfaz, “os complexos procuram novos deuses e recorrem a velhos, dormentes em seus porões” (HILLMAN, 2010, p. 202). “A psicopatologia está sempre presente dentro da religião e não enxergamos na medida em que a religião funciona com sucesso, pois recebe uma base racional em seu dogma” (HILLMAN, 2010, p. 202). É através primeiramente da religião que compreendemos os padrões de “patologização de uma cultura, como são vividos e justificados” (HILLMAN, 2010, p. 203). As distorções categorizadas como psicopatologias devem-se ao distanciamento da alma com suas imagens aflitivas que são encarceradas para evitar exposição. Nesse sentido, a psicologia arquetípica pode expressar a “psicopatologia em poucas palavras, uma dentro da outra: dentro da aflição está um complexo, dentro do complexo há um arquétipo, o qual, por sua vez, refere-se a um deus. As aflições apontam para os deuses, os deuses nos alcançam através das aflições” (HILLMAN, 2010, p. 217).
Algumas atividades de servidão ou mesmo atitudes não condizentes com o ethos humano, como rituais, são classificados como deprimentes, aterrorizantes, humilhantes etc, no entanto, se está inserido dentro do dogma religioso, pode tornar-se perfeitamente justificável e/ou necessário, pois, “servir uma mania é detestável e indigno, mas servir a um deus é algo cheio de significado” (HILLMAN, 2010, p. 218).
Esse extenso texto tem a intenção de nos auxiliar acerca do entendimento de que é preciso cultivarmos a alma, sem, no entanto, nos tornarmos reféns de mitos cujos arquétipos são produzidos no arcabouço dos dogmas que encarceram nossa anima em imagens de terror, de servidão e fora dos padrões exigidos pela harmonia da coletividade. É preciso prevenir o adoecimento da alma e cultivá-la a partir das melhores e possíveis imagens que moldem nossa persona para o bem viver. Nesse sentido é importante que possamos perceber os grilhões de velhos mitos que adentram às igrejas em busca de sua própria sobrevivência em detrimento daqueles que carecem de perspectivas para o cultivo da alma. O cárcere religioso sem perspectiva ética e humana pode inflar as patologias do espirito através das distorções que levam a um deus que rompe com qualquer possibilidade civilizatória, instala o caos e assiste patologicamente a morte da alma dos seus seguidores.
Referência:
HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2010