Nem Talebã, nem Bolsonaro

Em 1983, o presidente estadunidense Ronald Reagan, recebeu na Casa Branca um grupo de rebeldes, conhecidos por Mujahideen. Na lógica do “inimigo de meu inimigo é meu amigo”, estes combatentes foram financiados e armados pelos Estados Unidos para lutar contra a União Soviética em território afegão.

Após o fim da Guerra Fria, já em 1994, criaram aqueles que depois seriam chamados de terroristas, mas antes eram chamados de guerreiros da liberdade: o Talebã. Estes dominaram o Afeganistão até 2001, quando foram derrubados pelos seus antigos aliados norte-americanos que os acusavam de abrigar a Al-Qaeda, de Osama Bin Laden, organização responsável pelo ataque terrorista de 11 de setembro.  Agora, depois de 20 anos de ocupação, seus antigos patrocinadores retiram suas tropas do país e o Talebã retoma o controle do país. 

Não restam dúvidas que este episódio é uma derrota para os Estados Unidos. Embora ainda seja a maior potência bélica do planeta, depois de 20 anos, com mais de US$ 1 trilhão de dólares gastos e mobilizando mais de 775.000 soldados desde 2001, não conseguiram vencer a organização que no passado apoiaram. Também não restam dúvidas de que são os Estados Unidos, desde o fim da II Guerra, o principal causador de conflitos bélicos e de instabilidades políticas em todo o mundo, inclusive promovendo ou apoiando golpes de Estado, de antigo e de novo tipo. 

A derrota dos Estados Unidos, no entanto, pode ser algo bom, principalmente para autodeterminação dos povos. O mesmo não pode ser dito sobre a vitória do Talebã, e é por isso que não se pode esquecer que a atual situação do Afeganistão é de responsabilidade dos estadunidenses, seja pelas consequências de 20 anos de ocupação, seja por ter financiado o Talebã em passado recente. 

No Brasil, os setores que promovem e replicam o antipetismo, que colaboraram com a eleição de Bolsonaro e sentem algum constrangimento em continuar apoiando o governo de extrema-direita, decidiram buscar paralelos entre a nossa política e o Afeganistão.

Com alguma honestidade intelectual, teria caído por terra o argumento esdrúxulo de que vivemos uma polarização entre dois extremos no Brasil. Polarização existe, claro. A política reflete as tensões que existem a partir das relações entre as classes sociais. Há desejos de manutenção e desejos de mudanças. Só não haveria “polarização” se houvesse um gigantesco centro político hegemonizando e forjando consensos na sociedade. 

Acontece que um dos polos, a extrema-direita, aplica a mesma política que é defendida pela direita neoliberal tradicional e que alguns incautos chamam de centro. A diferença entre estes e o bolsonarismo é que os primeiros têm “bons modos” e os últimos, não. 

A direita que olha para o espelho e chama a si mesma de centro diverge dos métodos do bolsonarismo, não de seus fins. Afinal, qual é a divergência na agenda econômica entre os governos Temer e Bolsonaro? 

Para justificar a crítica à “polarização” fazem a seguinte manobra retórica: “extrema-direita/direita/centro/esquerda/extrema-esquerda” passa a ser “extrema-direita/direita/esquerda”. Transformando em sinônimo as palavras “polo” e “extremo”, a direita passa a se colocar como um centro ponderado. Porém, eis que o PCO apareceu defendendo os Talebãs. A extrema-esquerda, que não existia na retórica de alguns bolsonaristas arrependidos, passou a existir. O destaque que foi dado ao PCO foi apenas uma tentativa de defender a direita e atacar a esquerda aqui no Brasil.

Consideremos alguns dados: em todo o país, o PCO tem menos de 4.000 filiados, menos da metade dos filiados que tem o PT só na cidade de João Pessoa, onde o partido tem mais de 10.000 filiados. Claro que estes números são apresentados com o intuito de mensurar a capilaridade de cada força política. 

Registre-se que, a despeito de sua análise sobre o papel da classe dominante brasileira, em apenas um mês, o PCO esteve ao lado do bolsonarismo na mesma foto por três vezes: defendeu o bandeirante exterminador de indígenas, Borba Gato; defendeu o voto impresso e se opôs a prisão do bolsonarista Roberto Jefferson por, segundo o ministro do STF Alexandre de Moraes, “fazer parte de possível uma organização criminosa que busca desestabilizar as instituições republicanas”. Nas palavras de um velho russo, o critério da verdade é a prática. 

Mas, quem lembrou do PCO, decidiu esquecer que o bolsonarismo tem muito mais que 4.000 filiados e mobiliza cerca de 20% a 25% da população, com um discurso tão fundamentalista quanto o Talebã, salvaguardando as diferenças culturais entre as sociedades.  Em tempo: os sauditas são tão fundamentalistas quanto os talibãs, porém são aliados dos Estados Unidos. Alguém já ouviu em alguma rádio ou TV ou leu algum blog alguma crítica ao regime da Arábia Saudita partindo daquelas vozes que têm coragem de gritar alto com o PCO e falam baixo com Bolsonaro? 

Considerando o que defendem e como defendem os apoiadores de Jair Bolsonaro, como estaria o país se, a exemplo do Afeganistão, não tivessem amarras impostas por instituições como o STF ou Congresso Nacional. O modelo que defendem aqui já é o que se tem no Afeganistão. 

Se o objeto é identificar semelhança na política brasileira com o Talebã, o método mais adequado seria classificar suas características constitutivas e averiguar o que há de semelhante ou aproximado com aquele modelo do aqui no Brasil. 

Primeiro, o Talebã é um grupo miliciano que surgiu e cresceu combatendo o comunismo. O combate ao comunismo, como se sabe, é uma plataforma política da direita e da extrema-direita. De acordo com nossos parâmetros ocidentais, considerando que o Talebã não é uma força política eleitoral e que não defende a democracia como procedimento ou valor, podemos dizer que trata-se de uma força política de extrema-direita e anticomunista. Na defesa de seus ideais, não hesitariam em matar “pelo menos 30.000 pessoas”, ou fuzilar o equivalente afegão à “petralhada”. 

O Talebã é fundamentalista de cunho religioso. Como tal, não expressa nenhum respeito pelo saber científico. Inclusive, matéria publicada no último dia 16 pelo portal da revista Exame e assinada por Allan Gavioli, informa que o Talibã ordenou a paralisação da vacinação contra a Covid 19. A mesma matéria traz informações do portal Our World in Data informando que o Afeganistão aplicou a primeira dose em somente 2% da população e apenas 0,5% está com a imunização completa. 

O Talebã também não valoriza a educação, a cultura e o patrimônio histórico, a exemplo da explosão de estátuas centenárias de Buda, destruídas em 2001. Não seria incomum em uma sociedade dirigida pelos talebãs que cinematecas, bibliotecas ou museus fossem destruídos pelo fogo, ou que livros fossem considerados lixo e destinados ao descarte como se deu recentemente na Fundação Palmares, no governo Bolsonaro.  

Machistas negam às mulheres diversos direitos, a começar pela educação, e defendem as mais diversas formas de opressão. Será que frases contendo ameaças como “só não te estupro porque…” seriam estranhas vindas de um talebã? 

O programa político do Talebã coloca Deus acima de tudo e conceitos como família, pátria e armas são elementos mobilizadores. Aliás, caso algum cristão de direita tenha dúvidas, passar alguns dias no Afeganistão ou Arabia Saudita seria didático para entender o que é e qual é a importância do Estado laico. 

Assim, temos os seguintes elementos: milícias armadas, discurso fundamentalista, ataques às liberdades individuais, combate às artes e à diversidade humana e nenhum compromisso ou apreço com a democracia. Afinal, para quem gosta de livre analogias, quem seriam os talibãs brasileiros?

No livro “Os filhos dos dias”, Eduardo Galeano contou o seguinte: 

“No final de 1979, as tropas soviéticas invadiram o Afeganistão.  De acordo com a explicação oficial, a invasão queria defender o governo laico que estava tentando modernizar o país. Fui um dos membros do tribunal internacional que tratou do assunto em Estocolmo, no ano de 1981. Jamais esquecerei o momento culminante daquelas sessões. Estava dando seu depoimento um alto chefe religioso, representante dos fundamentalistas islâmicos, que naquela época eram chamados de freedoom fighters, guerreiros da liberdade, e que agora são terroristas. Aquele ancião trovejou: os comunistas desonraram nossas filhas! Ensinaram elas a ler e escrever!”l