O combate à fome como prioridade nacional

A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), foi criada em 2012. É uma rede de pesquisa e intercâmbio, independentes e autônomos em relação a governos, partidos políticos, organismos nacionais e internacionais e interesses privados e que tem entre seus objetivos “o exercício de uma pesquisa cidadã comprometida com a superação da fome e a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional, e também a contribuição para o
debate público de ações e políticas públicas que tenham interação com a Segurança Alimentar e Nutricional”.

No dia 8 de junho de 2022, ela publicou o resultado do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil. Segundo o relatório “A escalada da fome no Brasil está expressa em pratos cada vez mais vazios, olhares cada vez mais preocupados, e números em permanente e rápida ascensão” e revela que apenas quatro entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação (que inclui três refeições diárias) e que a fome no Brasil em 2022 atinge 33,1 milhões de pessoas e que são 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco
mais de um ano.

Os dados revelam que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome) e afirma que “O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990”. Eles foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, com entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e em 577 municípios, nos 26 estados e no Distrito Federal e estão disponíveis em https://www.oxfam.org.br/noticias/fome-avanca-no-brasil-em2022-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/.

A pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado para patamares equivalentes aos de 2004 (em função de políticas públicas de combate à pobreza e à miséria entre 2004 e 2013, houve uma redução significativa da miséria e da pobreza no país. Os estudos, inclusive dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a desigualdade começou a cair a partir de 2003, porém essa trajetória é interrompida em 2016. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) entre 2004 e 2014, a extrema pobreza no país foi reduzida em 63%%. Depois o país retorna ao mapa da fome.

Em 2018 o Brasil retorna ao mapa da fome e como disse o economista Walter Belik, um dos criadores do programa Fome Zero e pesquisador em Segurança Alimentar em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo no dia 22 de janeiro de 2022 “é um retrocesso inédito no mundo” e que o governo Bolsonaro conduz uma política deliberada de desmonte da política de segurança alimentar e portanto das iniciativas (exitosas) contra a fome no país.

No dia 6 de julho de 2022, foi divulgado um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) que mostram que o número de pessoas em insegurança alimentar no Brasil (dados de 2019 a 2021) são 61,3 milhões (de uma população estimada em 213,3 milhões), ou seja, três em cada 10 habitantes e deste 15,4 milhões incluídas na insegurança alimentar grave (pessoas que não tem o que comer).

O que explica esse retrocesso humano e civilizatório em num país que produz alimentos suficientes para acabar com a fome? È um problema complexo, há multicausalidade e multidimensionalidade da fome, mas é inegável que resulta ou é consequência da falta de prioridade ou descaso de governos, expressa no desmonte de políticas públicas de combate à pobreza e a miséria, e que se agrava com o crescimento da inflação, do desemprego, aumento dos preços dos alimentos, redução
da renda da população assalariada e no cenário atual, o aumento das desigualdades que foram ampliadas com a pandemia (e a forma como foi gerida) da Covid-19.

Como mostra o médico pernambucano Josué de Castro (1908-1973) que foi presidente do Conselho da Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidos – FAO (1952-56) em seus diversos estudos sobre a fome (como o clássico Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço, de 1947), a fome é resultado de decisões governamentais. Trata-se portanto de decisões políticas. E Passado mais de 70 anos desde seus primeiros estudos sobre o tema, o ciclo da fome descrito por ele permanece como um grave problema no país.

Em 2020, quando a pandemia se iniciou e foi crescendo progressivamente no Brasil (número de infectados e de mortes) já havia um cenário de pobreza e miséria, que cresceu ainda mais, como expressam os dados do relatório, com uma queda expressiva na segurança alimentar. De acordo com os dados, em números absolutos, são 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população, que passaram por algum grau de insegurança alimentar, um aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018.

A insegurança alimentar atinge as regiões de forma distinta, com o Norte e Nordeste, apresentando os maiores índices, 58,7% maior do que a média nacional. A fome atinge 25,7% das famílias na região Norte e de 21% no Nordeste (no Sul é de aproximadamente 10%) e principalmente a área rural na qual a insegurança alimentar atinge mais de 60% dos domicílios. Destes, segundo os dados do Inquérito, 18,6% são de famílias que tem o que eles chamam de “insegurança alimentar grave” e 21,8% dos lares de agricultores familiares e pequenos produtores.

E um aspecto importante revelado pelos dados é que há também uma questão racial, porque atinge principalmente os pobres negros. Enquanto a segurança alimentar é 53,2% dos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclararam branca, nos que se declarou preta ou parda é de 35%, quase 20% de diferença e comparado com os dados de 2020, houve um crescimento de quase 8%, passando de 10,4% para 18,1%.

A fome, também tem gênero. Em lares em que a mulher é a principal responsável, a fome passou de 11,2% para 19,3%, enquanto que em relação aos homens passou de 7,0% para 11,9%. Outro dado importante revelado é que em relação a 2020, as famílias com crianças menores de 10 anos, a fome passou de 9,4% para 18,1%%, ou seja, quase o dobro em pouco mais de um ano.

É evidente que existe uma clara relação da fome com renda. Em 67% dos domicílios com renda maior que um salário mínimo por pessoa, existe acesso a alimentos, mesmo que de forma precária, no entanto com o crescimento da inflação, especialmente em relação aos alimentos e o reajuste do salário mínimo abaixo da inflação, houve um aumento da fome. Segundo os dados, em 3% desses lares, há uma situação de fome e 6% “convivem com algum grau de restrição quantitativa de alimentos (insegurança alimentar moderada) e 24% não conseguem manter a qualidade adequada de sua alimentação (insegurança alimentar leve)”.

O fato é que existe hoje um país no qual há 33,1 milhões de pessoas em situação de fome, no qual houve um crescimento das desigualdades, da pobreza e da miséria e onde seis em cada dez habitantes enfrentam algum nível de insegurança alimentar.

Houve, em função da tentativa de reverter os índices de reprovação do governo, uma série de medidas que levou os combustíveis a ficarem (momentaneamente) mais baratos em função do corte no ICMS que o governo e Congresso Nacional determinaram aos estados a também a queda na cotação internacional da gasolina.

Mas isso tem um custo: a diminuição nos orçamentos para as áreas de Educação e Saúde, por exemplo, e que não teve impacto significativo no preço dos alimentos, que cresceu 11,42% desde o início do ano (em média, porque há produtos que cresceram muito acima desse índice). O que tem se constatado no Brasil é o crescimento da insegurança alimentar e hoje é um dos seus mais graves problemas e para reverter esse processo é fundamental reconstruir o país, submetido à lógica da destruição, que se tenha um governo comprometido com mudanças estruturais, com políticas públicas permanentes (e não apenas eleitoreiras), com foco no combate as desigualdades, à concentração de terras e renda, que mude o atual modelo (predatório) de produção de alimentos, com o uso intensivo de agrotóxicos – com suas consequências danosas para a saúde- que sejam
ampliados os recursos e incentivos para a agricultura familiar, entre outras medidas relevantes. Como disse a jornalista Flávia Oliveira no artigo O combate à fome é a maior das urgências, publicado no jornal O Globo no dia 29/07/2022 “A espiral da insegurança alimentar no Brasil é criminosa do ponto de vista humano, irresponsável no aspecto político e estúpida sob a ótica da responsabilidade fiscal. Precisa ser combatida. E já”.