O estatuto da filosofia ocidental e suas lacunas

Dando continuidade ao texto da coluna anterior, onde trago uma reflexão sobre a descontextualização  da filosofia africana por parte do ocidente, hoje dou continuidade a reflexão já iniciada nossos conceitos e exercitarmos nossa criticidade. Na atual conjuntura mundial, onde guerras arrasam populações inteiras e as subordinam ao seu poder, as reflexões sobre colonizações, contextualizações e opressões das mais diversas formas, se tornam cada vez mais necessárias.

A negação da construção cultural e epistemológica do continente africano para a humanidade é um fato historicamente inquestionável. No entanto, é possível perceber na própria história ocidental que há a sua negação, tanto na história quanto na filosofia, muito embora haja percepção clara da herança negra na área cultural, e nesse caso, quando não se nega, se exoticiza.  

Em todos os cenários de afirmação africana, percebem-se reações de negação por parte de vários autores ao longo da história e filosofia no ocidente. Em alguns casos alega-se a questão da oralidade para negar a produção de um conhecimento filosófico, no entanto esse argumento vai de encontro à própria filosofia praticada no período socrático, tendo em vista que Sócrates (399 a.C), em vida, nada escreveu, sendo seu legado fundamentado na oralidade relatada posteriormente por seus discípulos. 

Contudo, o ocidente consolidou a filosofia eurocêntrica como sendo a única possível, o que é repetido exaustivamente na academia ao longo dos séculos, o que gerou uma barreira entre a Filosofia praticada no ocidente e a Filosofia de África, permitindo que a África ainda seja tratada hoje com um preconceito anacrônico inadmissível. 

O debate sobre a negação de uma epistemologia é  um grande desafio para a filosofia tradicional ocidental, talvez o maior desafio “ético-político de nossos dias seria questionar em que medida essa mitologia branca não seria nem ingênua nem inocente, frente à exclusão daquilo que não corresponde as sua exigências, deixando de fora as experiências radicais de pensamentos existentes em outras culturas” (HADDOCK-LOBO, 2015, p. 34). 

É nesse sentido que se deve questionar o que cabe no estatuto epistemológico da filosofia ocidental e em seu caráter antropocêntrico. Se nesse guarda chuva que exclui de si o conceito de humanidade há a permissão de olhar através do outro e ser com o outro; se há espaço para uma autocrítica e um novo olhar, sob novas perspectivas, do que cabe naquilo que regulamenta o que vem a ser a filosofia, contextualizando-a de forma inclusiva e plural como de fato é o conhecimento.

O que está oculto através da negativa de uma filosofia africana é claramente o preconceito étnico e geográfico que gerou o epistemicídio de milhões de negros e negras ao longo dos séculos, na vã tentativa de sepultar uma epistemologia africana que re-existe pela vontade, memória e pela força daqueles que, mesmo humilhados e feridos em sua existência humana, nunca perderam de fato o que lhes dava o pertencimento de humanidade na pluralidade da existência, o ubuntu que lhes permite ser no outro e através do outro.

O povo assolado pela colonização eurocêntrica teve negado seu direito de escolhas. O colonizador escolheu o destino dos colonizados e tal fato está refletido na forma de tratamento da população negra expatriada pela diáspora africana, tratados como não-humanos, objetificados e vilipendiados em toda sua extensão de humanidade. A afirmativa da filosofia, do pensamento e dos pensadores africanos é um caminho de libertação, uma trajetória de desapego, chamado por alguns autores de decolonização ou desdogmatização (KAJIBANGA, 2015), cujo objetivo é desmarginalizar a filosofia africana, arguindo e re-situando o seu espaço epistemológico a partir do questionamento do estatuto da Filosofia tradicional eurocêntrica e emancipando-a do servilismo e do colonialismo para recuperar sua humanidade, sua dignidade (MANCE, 2015).

O estatuto filosófico e a discussão sobre o que cabe no guarda chuva da filosofia é algo que precisa ser explorado e discutido em seu caráter histórico, social e epistemológico, humano e ético, pois é necessário re-situar o campo filosófico e incluir o continente africano nesse espaço de conhecimentos, o que foi historicamente negado pelo pensamento cartesiano eurocêntrico. A partir da compreensão de que o colonialismo estabeleceu seus dogmas asfixiantes sobre outras formas do pensamento filosófico, aniquilando as diferenças e a pluralidade epistemológica inerentes a própria humanidade, é possível reparar os equívocos cometidos pelas análises rasas ou mesmo carregadas de preconceito que foram repetidas e repercutidas ao longo dos séculos pela academia tradicional no ocidente, e evitar que se perpetue o epistemicídio e as práticas da opressão “que se escraviza e oprime o povo, silenciando suas dores e mesmo sua existência enquanto ser no mundo” (NEGREIROS; LOPES, 2019, p. 365).

Esse caminho de conferir à filosofia africana seu ‘status’, permite que se repense e reconfigure o pensamento ocidental, que se apare arestas e fendas abertas pelo colonialismo opressor que furtou de nações inteiras a sua dignidade de pensar-se a si mesmo com todos as peculiaridades e pertencimentos, substituindo-lhe as estruturas sociais, políticas,  religiosas e mesmo espirituais, bem como as estruturas do pensamento filosófico, por aquilo que lhes era pertinente em sentido colonizador. A filosofia precisa se repensar e, segundo Mance (2015), precisa ser alforriada da submissão das tragédias colonialistas. 

  1. REFERÊNCIAS

HADDOCK-LOBO, Rafael. Por uma crítica das razões mestiças: à filosofia compete incorporar novas experiências de pensamento. Dossiê Filosofia da ancestralidade. Revista CULT, n. 204. Agosto, 2015, p. 34-36

KAJIBANGA, Victor. Notas sobre a “problemática” da filosofia africana. In: SERRA, Carlos. O que é filosofia africana? Cadernos de ciências sociais. Lisboa: Escolar Editora, 2015. cap.1, p.11-38.

MANCE, Euclides André. Filosofia Africana – Autenticidade e libertação. In: SERRA, Carlos. O que é filosofia africana? Cadernos de ciências sociais. Lisboa: Escolar Editora, 2015. cap.2, p.39-76.

NEGREIROS, Regina; LOPES, Carolina Trindade. Diversidade étnica e religiosa no Brasil: desafios para uma cultura de paz. In.: BAGGIO, Vilmar. DNA Educação. Vol. V. 2ª ed. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2019.