O fim do pesadelo?

Para os que opõem ao governo Bolsonaro, o país vive em permanente e prolongado pesadelo desde o seu início em 2019, com o desmonte do Estado, de políticas públicas, os desastres na saúde (péssima e criminosa gestão na pandemia é apenas um dos exemplos mais dramáticos), falta de planejamento e diminuição de recursos para áreas estratégicas como ciência e tecnologia, educação, meio ambiental (sucessivos desastres ambientais no qual a Amazônia é apenas um dos exemplos mais expressivos) entre outros.

Além disso, há uma questão relevante, pouco discutida, que é sobre armas em circulação no país (além do que existe nas forças armadas e policias). No artigo Xadrez do golpe de Bolsonaro em andamento de Luis Nassif, publicado em 31 de janeiro de 2022, ele afirma que desde o primeiro mês do governo Bolsonaro, vem denunciando a montagem de milícias armadas (o artigo lista uma série de matérias que mostram como isso tem ocorrido, desde 16 de janeiro de 2019, a primeira, quando mal começava o governo, denunciando suas ligações com a indústria de armas (“O xadrez da indústria de armas e o financiamento da direita”) ao mais recente, publicado no dia 25 de janeiro de 2022, analisando o fato de o governo zerar imposto para importação de armas e suas consequências, com o aumento de circulação de armas e munições (“Governo zera imposto para importação de armas”) e destaca como relevante as ameaças de se recorrer às armas caso Bolsonaro seja derrotado.

Em outro artigo “Xadrez de Bolsonaro se desmanchando no ar”, publicado em 31 de dezembro de 2021, ele analisa o que chamou de “xadrez”, dividindo em sete “peças”: o fim do ciclo Bolsonaro; o fim do ciclo militar; o tempo de Lula 3; o país de tico e teco; a crise da inteligência brasileira; as prioridades e os programas prioritários.

A ideia central da primeira “peça” é que o atual modelo se esgotou e que “as táticas de sobrevivência da família (Bolsonaro) eram “simples como o seu cérebro” (…) e destaca como antes “Havia um mapeamento eficiente das redes sociais. A cada sinal de enfraquecimento de Bolsonaro providenciava-se um fato novo, uma frase escandalosa para um público acostumado a merda e circo. E, em começo de governo, os estragos ainda não eram sentidos e se refere à extraordinária mediocrização institucional do país, o fracasso de todos os poderes, jogando a 7ª economia do mundo sob o jugo de um idiota completo” .

Para ele, o modelo se esgotou porque “a cada dia surgem mais evidências do enorme apagão administrativo em que o país foi jogado, em um processo amplo de destruição, de inconsequência, de uma irresponsabilidade geral e irrestrita”. E que Bolsonaro, em queda livre, foi obrigado pelas circunstâncias a “administrar as alianças com prebendas mais substanciosas”.

Mas a questão que parece mais relevante é qual será o comportamento de Bolsonaro e seus apoiadores, inclusive nas Forças Armadas e policias, após e até agora previsível derrota eleitoral. Que ele não aceitará seus resultados, qualquer que seja, em caso de derrota, já tem deixado claro, mas para anular eleições vai precisar de mais dos que os votos de sua base eleitoral fanatizada e aí, me parece, o aspecto central que é o comportamento das forças armadas e das policias. E isso se remete à questão das armas. Além das Forças Armadas e das policiais (dos Estados, Federal e civil) há muitas armas em circulação no país, que cresceu muito no seu governo (aliás, uma promessa de campanha eleitoral que foi cumprida).  Um programa da TV GGN exibido no dia 30 de janeiro de 2022 discutiu o que chamou de “A indústria de armas e o golpe de Bolsonaro” e foi destacado que um dos grandes desafios de um eventual terceiro governo Lula será desmontar o esquema bélico estabelecido e articulado durante o governo Bolsonaro desde que assumiu o poder.

No livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida – militares, operações psicológicas em uma perspectiva etnográfica” (Editora Alameda 2020), Piero Leiner afirma que em relação ao setor militar “não há nenhum setor mais beneficiado”, e que de fato é quem governa o país e “não se trata de uma questão numérica de aparelhamento do Estado, mas também de um processo de construção de uma hegemonia (isto é, de imposição de valores e símbolos) que os coloca no centro da sociedade” (p.42).

Se for assim, uma vitória eleitoral de Lula será o fim dessa hegemonia? Havendo monopólio de armas, abre-se necessariamente o caminho de um golpe? É certo que os golpistas, na ausência de votos, contam com armas e que estão não apenas com as forças armadas e policias (além de traficantes e milícias), mas também entre civis. Houve de fato um crescimento de pessoas armadas e armas em circulação no país. Uma reportagem publicada pela BBC News Brasil com o título “Sob novas regras, importação de armas de fogo bate recorde no Brasil” assinada por Leandro Prazeres no dia 31 janeiro 2022, mostra, com base em dados, que houve um aumento de 12% na quantidade de revólveres e pistolas importadas no país, e de 574% na importação de fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras: “O volume de importação de armas de fogo no Brasil aumentou 33% em 2021 em relação a 2020 e chegou a US$ 51,9 milhões, contra US$ 38,9 milhões. É o maior valor da série histórica produzida pelo Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), do governo federal, que começou em 1997”. Entre 2019 e 2020, houve um crescimento de 226% na entrada de armas no país, salientando que entre 2018 e 2019 o aumento havia sido de apenas 13%.

Conforme a matéria, “Os dados levantados pela BBC News Brasil mostram que o aumento não foi apenas no valor importado, mas na quantidade de armas que entraram no Brasil”.

Como se sabe, houve mudança na legislação (sancionada pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro) para acabar com o rastreamento de armas e munições no Brasil. Em abril de 2020 foi revogada uma portaria, aprovada em março do mesmo ano, do Comando Logístico (Colog) que tornava mais rígido o rastreamento, identificação e marcação de armas e munição, e assim a revogação da portaria do Colog praticamente acabou com o rastreamento de armas e munições. E quem se beneficia com isso?

A análise sobre a constitucionalidade de decretos editados pela Presidência da República que facilitaram o acesso a armas de fogo no país está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). São 14 ações abertas por diversos partidos, entre eles, PT, PSB, Psol e Rede. Em abril de 2021, alguns dispositivos dos decretos e de outros atos do Poder Executivo que ampliavam o acesso a armas foram suspensos pela ministra Rosa Weber por meio de uma liminar. Foram suspensas a autorização para que civis tenham até seis armas de fogo com simples declaração de necessidade e também de trechos do decreto que tratam sobre o controle de armamentos pelo Exército e do aumento do número de munições que podem ser compradas por colecionadores e atiradores.

No entanto, a votação foi interrompida por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, só retornando cinco meses depois, em setembro de 2021 e no dia 17, tendo apenas três ministros votados contra os decretos (Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Edson Fachin) o julgamento foi novamente interrompido por um pedido de vista do ministro Nunes Marques e ainda não foi votado.

Em dezembro de 2021 o ministro Edson Fachin suspendeu uma resolução da Câmara de Comércio Exterior (Camex) que havia zerado o imposto de importação de pistolas e revólveres, que entraria em vigor em janeiro de 2022.

Em relação a isso o controle e registro de armas é essencial, conforme pretendia a portaria revogada, sem isso, pode beneficiar inclusive traficantes, como mostra uma matéria publicada no dia 28 de janeiro de 2022 no jornal o Globo ao se referir a um traficante de armas chamado de “Bala 40”, que se valendo de registros de colecionador conseguia adquirir armas e munições para a maior facção criminosa do Rio de Janeiro (“Polícia Civil apreende, na Baixada, milhares de balas de fuzil de colecionador preso por vender fuzis ao tráfico”).

Quanto ao artigo “Xadrez de Bolsonaro se desmanchando no ar” de Luís Nassif, há o que ele chamou de fim do ciclo militar. Para ele, o governo Bolsonaro é fundamentalmente um governo militar: “A verdadeira cara do bolsonarismo são os militares” (acantonados no Palácio) a quem cabe a verdadeira gestão de governo (…). “São eles que definem os passos de Bolsonaro, alertam quando suas loucuras chegam às raias da ebulição, definem suas alianças políticas e, em tese, as prioridades administrativas”. E que “Os resultados até agora comprovam ser uma das equipes mais canhestras e descompromissadas com o interesse nacional na história da República”.

Se for assim, será que uma vitória eleitoral de Lula irá significar o fim da hegemonia e do ciclo militar? Sairão do governo (hoje são mais de seis mil cargos comissionados, especialmente de integrantes do Exército) e simplesmente voltarão aos quartéis? Como se comportarão? Cumprirão a Constituição, possibilitando a posse (e o governo) de Lula?

E, mesmo considerando, como os democratas assim esperam, que garanta a eleição e a posse, conseguirão controlar a direita e a extrema direita que certamente tentarão inviabilizar o governo Lula, como fizeram com Dilma Rousseff  da mesma forma que fizeram antes com Getúlio Vargas (no segundo governo, de 1951-54) e João Goulart (1961-64)? Quem irá impedir se não houver mobilização popular nesse sentido? Considerando o que ocorreu no passado, e hoje com a direita e extrema direita mais mobilizada, é uma possibilidade que as lições da história ensinam que não deve ser desconsiderada.

De qualquer forma, os exemplos recentes do que ocorreu nos Estados Unidos, com a invasão do capitólio por apoiadores de Donald Trump (estimulados por ele), que não aceitou os resultados das eleições, acusando, sem qualquer prova consistente, de ter havido fraudes eleitorais, pode servir de “inspiração” para que os apoiadores de Bolsonaro fazerem o mesmo, com a invasão no Congresso Nacional e cujos resultados são imprevisíveis.

Caso isso não ocorra e os resultados eleitores sejam respeitados, e Lula seja eleito e empossado, quais as alternativas de um terceiro governo Lula? Mais um governo de conciliação? O que Lula tem procurado fazer é tentar constituir um amplo arco de alianças, inclusive com setores da direita não golpista, cujo programa deve ir além do programa do PT e seus aliados de esquerda, como expressa sua intenção de compor uma chapa com Geraldo Alckmin, porque sabe das dificuldades de governar com o mercado e Congresso Nacional hostis, assim como tem consciência das enormes dificuldades que enfrentará sem o apoio das forças armadas.

A questão, portanto, é indagar se o fim do governo Bolsonaro será mesmo o fim do pesadelo ou sua continuidade, com a não aceitação dos resultados das urnas e tentativas de golpe. Assim, a vitória de Lula pode não significar, necessariamente, o fim do que estamos chamando aqui de pesadelo. Como disse o cientista político Roberto Amaral em artigo publicado no site 247 no dia 4 de fevereiro de 2022, o bolsonarismo desde sempre expôs as mais claras provas de inaptidão para o processo democrático, com ausência de limites morais e cívicos, o que coloca em risco a própria democracia.

O fato é que, para governar, Lula vai precisar do Congresso, não apenas de apoio popular e das forças armadas, além do fato, relevante, de que enfrentará no seu terceiro governo problemas muito maiores do que encontrou em 2003, com o processo de destruição (em curso) do Estado brasileiro, desmonte de políticas públicas, ausência de investimentos em educação, saúde, ciência, tecnologia, meio ambiente etc. Como diz Nassif, “O desafio maior de um terceiro governo Lula não será apenas o da reestatização das estatais estratégicas”, mas “o aprofundamento da democracia em todas as instâncias, trazendo a sociedade organizada para o centro das políticas públicas e criando ferramentas de organização da sociedade desorganizada” e uma de suas principais ideias-força será a de criar as condições para a geração de emprego e renda. Além, claro, a defesa e o aprofundamento da democracia e suas instituições.