O fundamentalismo e suas implicações politicas em relação à intolerância religiosa

A intolerância religiosa é em si mesmo uma falta de respeito à diversidade, a pluralidade e às liberdades individuais e coletivas previstas na Constituição Federal de 1988, mas é, sobretudo, uma profunda ignorância sobre a humanidade e a imensa colcha de retalhos que nos compõe, além de se caracterizarcomo um “crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana” (RIVIR, 2015).

No guarda-chuva da diversidade religiosa temos, assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e pela Constituição Federal de 1988, a garantia da laicidade do Estado que pressupõe a sua neutralidade em relação às diferentes religiões e credos, assegurando o respeito, a liberdade e a equidade entre todas as pessoas, indiferentemente de suas crenças religiosas ou de suas não-crenças. A garantiadestes direitos constitucionais e humanos é imprescindível para coibir a violência, o preconceito e o racismo religioso que permeiam a sociedade , oriundos da profunda intolerância religiosa e do racismo estrutural, ambos fundamentados  numa falsa supremacia racial branca e no fundamentalismo religioso que tem cooptado adeptos  cada vez mais inclinados ao nazifascismo, a partir do avanço da extrema direita no Brasil e em diversas partes do mundo cujos argumentos são alicerçados em fakenews e discursos de ódio.

Sobre a questão do racismo estrutural, é importante explicar que, segundo Silvio Almeida (2020, p. 20-21), o racismo é sempre estrutural, sendo um “elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”, reproduzindo a desigualdade e a violência.  Segundo o autor, a ideia de raça ganha relevância social a partir da filosofia moderna como “um dos produtos mais bem acabados da história moderna e exigiu uma sofisticada e complexa construção filosófica” (ALMEIDA, 2020, p. 25). O autor assegura que a “noção de raça ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários”.

Para Ferreira (2015) o racismo tem sua origem histórica no colonialismo e seu objetivo é a manutenção das desigualdades sociais e a manutenção do poder hegemônico de um grupo em detrimento de outros – um grupo detém o poder e subalterniza o outro:

O racismo não é uma simples tecedura de preconceitos aberrantes, nem uma confabulação ideológica descartável, tampouco uma realidade oportunista surgida há pouco. Trata-se de uma forma de consciência/estrutura de origem histórica, que desempenha funções multiformes, totalmente benéficas para um grupo, que, por meio desta, constrói e mantém um poder hegemônico em relação ao restante da sociedade (FERREIRA, 2015, p.189).

Acho interessante trazer alguns dados do IBGE para a discussão. Apesar dos dados serem de 2010 (AZEVEDO, 2012),eles podem nos informar muita coisa em relação a divisão dos grupos religiosos, principalmente ao compará-los com os dados de uma pesquisa do Instituto DataFolha de 2019.

Vamos aos dados de 2010:

– População católica no Brasil: 64%

– População Evangélica: 22%

– Não religiosos ou Irreligiosos: 8%

– Espíritas: 0,7%

– Afroreligiosos: 1,6%

– Outras Religiões: 1,3%

Vamos aos dados de 2019:

– Católicos: 50%

– Evangélico: 31%

– Não religiosos ou Irreligiosos: 10%

– Espíritas: 3%

– Afroreligiosos: 2%

– Ateus: 1%

– Judeus: 0,3%

– Outras Religiões: 2%

Os dados mostram muitas coisas, mas destaco que, apesar do Brasil ter a maior população católica do mundo, na última década o catolicismo encolheu cerca de 14% e, certamente, muitos dos católicos progressistas cuja orientação baseava-se nas antigas CEBs – Comunidades Eclesiásticas de Base (comunidades inclusivistas  das décadas de 1970 e 1980 no Brasil e América Latina, ligadas à Igreja Católica e incentivadas pela Teologia da Libertação), estavam dentro desse grupo que encolheu significativamente.

Outro dado importante é que o grupo dos evangélicos foi o que mais cresceu na ultima década, especialmente os pentecostais e neopentecostais. Junto com ele, cresce o discurso conservador e a teologia da prosperidade, cuja origem se dá em solo norte-americano no século XIX, tendo sida desenvolvida no Brasil na década de 1970, através do bispo Edir Macedo, criador da Igreja Universal do Reino de Deus (LEMOS, 2017).

Importante destacar que nos anos de 1970 os católicos representavam, no Brasil, cerca de 91,8% e os evangélicos eram cerca de 5,2% da população. O crescimento dos evangélicos se deu principalmente nas comunidades pobres, com um discurso salvacionista e de prosperidade financeira.  Os pastores, sem a necessidade de uma formação teológica rígida, se multiplicaram e multiplicaram suas células, se adaptando aos diversos públicos, pregando, além da teologia da prosperidade, a pauta dos costumes e seus valores morais intransigentes e fundamentalistas. Esse cenário foi preponderante para o aumento da intolerância religiosa no Brasil, bem como para o racismo religioso. Onde havia templos de jurema, umbanda ou candomblé, abriam-se igrejas evangélicas que afrontavam e afrontam até hoje. A migração ocorria por cooptação, por medo (em vários sentidos) ou por desistência de uma resistência de pessoas isoladas pela própria comunidade.

Na década de 1990 as igrejas evangélicas criam certo pacto para ingressar na política partidária e formal, e como numa via de mão dupla, a política passa a ser um instrumento de cooptação, principalmente nas comunidades e entre as pessoas de baixa renda e escolaridade, ao passo que os fiéis da igreja passam a perpetuar seus lideres de púlpito nas cadeiras do senado, do congresso e nas câmaras de vereadores e deputados estaduais, em um crescente movimento de ocupação dos espaços de poder.

Esse movimento tem consequência direta na política estabelecida no país e foi através dele que o grupo dos evangélicos conseguiu criar uma unidade e eleger, em 2018, o presidente Jair Bolsonaro (2019 – 2023). O presidente eleito reforçou o movimento evangélicoatravés da distribuição de cargos a pastorese, em diálogo com a bancada evangélica no congresso,indicou pessoas terrivelmente evangélicas – palavras do próprio presidente,para ocupar os espaços de poder no executivo e no judiciário, fortalecendo o discurso reacionário e a pauta conservadora. Na prática, uma tautologia!

Todo esse cenário implica necessariamente no aumento da intolerância religiosa, tendo em vista que o discurso conservador e sectário em nada se relaciona com uma cultura de paz, sendo em si mesmo uma incoerência em relação ao Evangelho Cristão. Este discurso é certamente o de Cristãos sem Cristo! E ele tem aumentado exponencialmente o extremismo e o fanatismo religioso, o que por sua vez, contribui para o aumento do racismo religioso que é o retrato da intolerância no Brasil. Tudo isso leva a constantes violações contra templos religiosos, símbolose contra pessoas, principalmente em relação àquelas que fazem parte das religiões afro-brasileiras, cuja maioria dos adeptos é de pessoas negras e periféricas. Não é coincidência! É um projeto colonialista!

A demonização das religiões afro-brasileiras é fruto, em grande parte, do crescimento do fundamentalismo pregado pelas igrejas pentecostais e neopentecostais (JUNIOR, 2016), da sua pauta conservadora e da imposição de uma verdade única e universal que implica em um único e verdadeiro deus e de uma única e verdadeira igreja, em detrimento da diversidade da cultura e das diversas religiões existentes. No entanto, é importante explicar que as religiões são criações humanas e que nenhuma pode se sobrepor a outra ou ser considerada melhor ou mais verdadeira que outra. A fé está relacionada à subjetividade humana e o mais importante é que estas religiões nos ensinem a viver coletivamente em cooperação, com empatia e solidariedade, assim nos tornamos humanos cotidianamente. Tornamo-nos humanos através uns dos outros, é a filosofia africana do Ubuntu na prática.

É importante respeitar a individualidade e a coletividade para fomentar a cultura de paz, tão necessária para a humanidade e o planeta, inclusive aos ateus, aos agnósticos, aos irreligiosos. É preciso, sobretudo respeitar as diferenças, seja de credo, de raça ou de gênero. Além disso, é importante educar para a compreensão de quem somos no mundo, educar para despertar a consciência de equidade e para a necessidade do respeito à diversidade, desconstruindo discursos hegemônicos fundamentalistas, combatendo a intolerância e o racismo religioso, implementando políticas públicas, inclusive e principalmente nas escolas, buscando a promoção da diversidade religiosa e dos Direitos Humanos, essenciais para a construção da cultura de paz, da inclusão e de um mundosem discursos de ódio.

 

Referências

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural. Coleção Feminismos Plurais. São Paulo: Sueli Carneiro, editora Jandaíra, 2020.

Christians remain world’s largest religious group, but they are declining in Europe. 2017. Disponível em: https://www.pewresearch.org/fact-tank/2017/04/05/christians-remain-worlds-largest-religious-group-but-they-are-declining-in-europe/ . Acesso em 02 dez. 2022.

FERREIRA, S. L. (2015). Racismo e Sociedade. Revista Baiana De Enfermagem‏, 29(3), 189–191. https://doi.org/10.18471/rbe.v29i3.14420. Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/issue/view/1151. Acesso em 20 mai 2022.

JUNIOR, Walmyr. Racismo religioso é o retrato da intolerância no Brasil. 2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/racismo-religioso-e-o-retrato-da-intolerancia-no-brasil/?amp=1&gclid=Cj0KCQiA7bucBhCeARIsAIOwr-_jr9I0Y5SEXfKNjDBRazfH6i5RSpqKgj4YSKT2XPlx4GuN6weViz0aAtqkEALw_wcB. Acesso em 02 dez. 2022.

Relatório de Intolerância e Violência Religiosa – Rivir 2011-2015: resultados preliminares / Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos; organização, Alexandre Brasil Fonseca, Clara Jane Adad. – Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, SDH/PR. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/cnrdr/pdfs/relatorio-de-intolerancia-e-violencia-religiosa-rivir-2015/view. Acesso em 30 Nov. 2022.

The Global Religious Landscape.The Pew Forum on Religion & Public Life.PewResearchcenter. 18 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.pewresearch.org/religion/2012/12/18/global-religious-landscape-exec/. Acesso em 02 dez. 2022.

LEMOS,Carolyne Santos. Teologia da prosperidade e sua expansão pelo mundo. Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 11, n. 20, jul/dez, 2017, p. 80-96.  Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 80. Acesso em 04 dez. 2022.

AZEVEDO, Reinaldo. O IBGE e a religião — Cristãos são 86,8% do Brasil; católicos caem para 64,6%; evangélicos já são 22,2%. 2012. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/reinaldo/o-ibge-e-a-religiao-cristaos-sao-86-8-do-brasil-catolicos-caem-para-64-6-evangelicos-ja-sao-22-2/. Acesso em 03 dez. 2022.

50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml. Acesso em 06 dez. 2022.