O ódio na política e a política do ódio

Uma matéria publicada na revista Carta Capital no dia 14 de abril de 2022, por Ana Flavia Gussen, trata das ameaças a Lula por parte de alguns parlamentares: “Ao ameaçar Lula, parlamentares atiçam a matilha bolsonarista, armada até os dentes”. Na matéria ela afirma que “as ameaças são parte de uma nova fase da violência política brasileira, que sofreu uma escalada com o golpe de 2016 e atingiu níveis alarmantes desde a eleição de Bolsonaro”. Este comportamento resume em parte o que está ocorrendo no país, com a disseminação do ódio, da intolerância e da violência, não apenas com “jagunços do legislativo semeando o ódio” mas também nas ruas e nas redes sociais.

O fato é que se não houver punições por parte da justiça, a tensão vai continuar e pode comprometer a própria eleição associada ao crescimento do acesso a armas e munições por parte de civis, a maioria apoiadores do atual presidente. Na matéria há inclusive a informação de que em diversos Clubes de Tiros fotos de Lula aparecem como alvos e, nesse sentido, não por acaso, especialistas consultados pela reportagem afirmaram que a eleição deste ano poderá ser uma das mais violentas desde o fim da ditadura.

Os discursos de ódio, potencializados nas redes sociais, o uso de mentiras sistemáticas para desqualificar adversários (transformados em inimigos) são alimentados pelos discursos do próprio presidente da República. No entanto, o que existe hoje, o ódio como um componente essencial do cenário político, antecede a vitória eleitoral da extrema direita em 2018 e está presente em uma sociedade que se caracteriza por um autoritarismo estrutural. Nesse sentido o discurso de ódio encontra guarida com a instrumentalização política do fanatismo ( no qual o ódio é um dos seus componentes).

No artigo Ódio e política no Brasil atual, publicado na revista Teoria e Debate (Edição 199, de 04/08/2020), Antonio Albino Canelas Rubim – professor da Universidade Federal da Bahia – analisa os efeitos da fabricação cotidiana do ódio e da violência e mais especificamente em relação ao PT e à esquerda em geral, se referindo ao “brutal processo de inoculação do ódio na sociedade brasileira e que deriva da histórica postura antidemocrática das classes dominantes”. Mas, como ele destaca, não se trata de algo específico das eleições de 2018 com a vitória eleitoral da extrema direita, nem do golpe de 2016. Para ele, resultam de um longo processo de acionamento e construção do ódio desenvolvido no Brasil desde pelo menos 2005, com o chamado mensalão e a forma como foi feita a cobertura dos eventos pela grande mídia.

Para compreender , portanto, o ódio na política no Brasil de hoje, é necessário retroceder e perceber que houve um processo de sua construção que alimentou e se sedimentou no cenário político e que, como ele diz, encontra o ambiente muito favorável a partir de 2019 quando se “instalou o ódio no cerne do governo federal, com seu culto ao ódio, estímulo à violência e defesa da ditadura”. Trata-se de ter uma compreensão mais ampla desse processo, chamada por Rubim de “genealogia do mal”, quando o ódio transforma os adversários em inimigos (a serem destruídos) sem respeito à divergência de opiniões, interditando a pluralidade, o confronto e o debate de posições políticas diferenciadas. Aspecto importante: tal cenário não nasceu nas redes sociais (embora potencializado por elas). Há responsáveis pela “fabricação do clima de ódio” e, entre eles, um dos seus núcleos centrais, a grande mídia enquanto ator político, que de “modo quase unânime, buscou inocular o veneno cotidiano na população brasileira”.

O inicio desse processo foram os desdobramentos de uma entrevista para o jornal Folha de S. Paulo, no dia 6 de julho de 2005, do então deputado Roberto Jefferson, afirmando que o governo pagava mesadas para deputados votarem a seu favor e usou o termo “mensalão”. Foi a largada da cobertura dos principais jornais diários, revistas semanais e emissoras de rádio, cujo alvo principal era Lula e seu governo. Revistas Veja, Época e IstoÉ, canais de televisão – Rede Globo, SBT, a Record, a Bandeirantes – jornais O Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo, O Globo, e rádios, como a Jovem Pan (porta-voz da extrema direita) que participaram ativamente da campanha de produção do ódio à esquerda e, em especial, ao PT e que ao colocar em foco (de forma seletiva) o tema da corrupção, tinham um claro objetivo político (…) “sedimentando em uma parcela da população uma animosidade profunda contra a esquerda, os petistas e suas lideranças, quando não um visceral ódio a eles (…) mobilizando dimensões imanentes do autoritarismo estrutural presentes na sociedade brasileira: discriminações, preconceitos, privilégios e violências de toda ordem foram acionados e estimulados pela imprensa para desqualificar a esquerda e viabilizar a tomada antidemocrática do poder federal”.

Não fizeram o mesmo com todos os políticos e partidos, e demonizaram, de maneira cotidiana, enfática, seletiva e sistemática, a esquerda e os petistas como responsáveis pelo “maior esquema de corrupção já visto no Brasil” e nisso foram muito eficazes. A dose de ódio inoculada na sociedade possibilitou o crescimento da extrema-direita e contribuiu para sua vitória eleitoral em 2018 , mas houve um caminho pavimentado pela grande mídia.

Mas se antecede às eleições de 2018, também não é algo específico do Brasil. O livro O discurso do ódio (Editora Difel, 2007), de André Gluckmann, é uma reflexão sobre o ódio e seu papel na sociedade. A tese defendida é que “o ódio existe tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por
agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias das palavras”. Para ele, as razões atribuídas ao ódio “nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, que libera a vontade de destruir simplesmente por destruir”.

Isso atinge a própria democracia. No livro O ódio à democracia, o filósofo francês Jacques Rancière (Boitempo, 2014) analisa as contradições de alguns países democráticos (Europa em particular) e o que chamou de “os impasses entre a democracia como princípio e às respectivas práticas sociais que a contradizem.” Ele propõe uma reflexão que se estrutura em torno de três ideias básicas: 1) A democracia tem um significado revolucionário ao qual é necessário retornar; 2) As sociedades autoproclamadas democráticas na realidade são oligarquias com forma representativa (eleições periódicas etc.); 3) Para analisar o ódio à democracia, é preciso compreender seu contexto, que para ele hoje tem um sentido novo que é preciso entender corretamente para combater, que é justamente a ideia de que a democracia é um sistema representativo de caráter oligárquico. Assim, mesmo com os processos eleitorais considerados democráticos, possibilitando disputas eleitorais, há um poder que se perpetua, o das oligarquias que de fato controlam o processo e os governos e assim se contrapõem aos princípios e práticas de um regime político de equidade e liberdade. Nesse sentido, o ódio resulta de uma sociedade na qual pessoas não são e nem se percebem iguais. Para Ranciére há um movimento crescente disposto a destruir as instituições para preservar os privilégios de uma minoria que se apropria do poder.

Em junho de 2019, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou o que chamou de Um Plano de Ação sobre o Discurso do Ódio, entendido como “Qualquer tipo de comunicação falada, escrita ou comportamento que ataca ou usa linguagem pejorativa ou discriminatória com referência a uma pessoa ou grupo com base em quem eles são. Em outras palavras, sua religião, etnia, nacionalidade, raça, cor, descendência, sexo ou outro fator de identidade”. Resumidamente, todas as formas de expressão que propagam, incitam, promovem ou justificam o ódio racial, a xenofobia, a homofobia, o antissemitismo e outras formas de ódio baseadas na intolerância.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que todos têm direitos iguais, independentemente de classe social, gênero, raça, etnia ou religião. No entanto, tais direitos não são respeitados. No Brasil, a Constituição de 1988 estabelece, em seu Art. 3º, inciso IV, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. No entanto, os crimes de ódio têm crescido com a escalada de discursos de ódio, racistas, machistas, homofóbicos que ganham propulsão nas redes sociais (e nas ruas) com o avanço do conservadorismo e obscurantismo. No caso do Brasil, se dá no contexto de um governo de extrema-direita, com arroubos preconceituosos, de cunho misógino e sexista, com o uso frequente de grosserias, ofensas à imprensa, e desprezo pelas instituições democráticas.

No livro Dilma Rousseff e o ódio político, do psicanalista Tales Ab’saber(Editora Hedra, 2015), entre outros aspectos, investiga o ódio à política que se desenvolveu especialmente a partir dos governos de Lula e Dilma Rousseff. Mostra a emergência da extrema direita, de uma oposição autoritária marcada pelo ódio, com o apoio da grande mídia hegemônica. Para ele, há um ódio político que se sustenta em uma “distorção efetiva da capacidade de pensar”, que teria base na “necessidade de saturar a realidade com desejos que não suportam frustração, bem como no impacto corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento”. Ele mostra como o discurso do ódio opera a partir da discriminação com o objetivo de restringir de direitos, usando até mesmo a violência e a aniquilação das vítimas expressas na discriminação, intolerância, preconceito e que “um dos seus desdobramentos é a perseguição, insultos e privação de direitos humanos a diversos indivíduos e grupos como os negros, os LGBTs e as mulheres”.

Hoje, ao se aproximar a realização de uma eleição presidencial, é de fundamental importância combater o ódio em todas suas expressões, em especial contra pessoas, candidatos e partidos que defendem a democracia, que são contra o racismo, a intolerância a discriminação de minorias. Para isso é necessário se ter mecanismos eficazes para agir contra as violações dos Direitos Humanos, em defesa da inclusão, da diversidade, das normas e princípios dos direitos humanos e, fundamentalmente, em defesa de uma sociedade efetivamente democrática.