Sobre o combate à tortura no Brasil

Uma importante iniciativa de combate à tortura no país foi à aprovação da Lei nº 12.847, sancionada no dia 2 de agosto de 2013, criando o Sistema Nacional de Prevenção e Combate a Tortura. O Brasil é signatário do Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 2002 e que entrou em vigor em junho de 2006. A lei aprovada no Brasil é parte do que foi estabelecido na ONU, no qual deveriam ser criados em cada membro (Estado-parte), subcomitês de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis Desumanos e Degradantes e Mecanismos Preventivos Nacionais de Combate à Tortura com o objetivo de designar, manter, com estrutura adequada o que foi estabelecido no Protocolo. No Brasil, dois anos depois da criação do Sistema Nacional, em 2015, foi criado o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Nesse sentido, se integra aos países que se comprometeram a respeitar acordos internacionais para acabar com a tortura.

O Comitê é composto por 23 (vinte e três) membros, sendo 11 (onze) representantes de órgãos do Poder Executivo Federal e 12 (doze) de conselhos de classes profissionais e de organizações da sociedade civil.

Os peritos têm como objetivo fiscalizar unidades públicas onde haja privação de liberdade realizando diagnósticos e em caso de constatação de violações dos direitos humanos podem requerer à autoridade competente que se instaure procedimento criminal e administrativo.

Seus integrantes devem ser pessoas com notório conhecimento e atuação e experiência na área de prevenção e combate à tortura, para mandato fixo de três anos, permitido uma recondução. E segundo a lei, deverão ser independentes (artigo 5º), com livre acesso às instalações de privação de liberdade, como centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos, instituições socioeducativa ou centro militar de detenção disciplinar.

No entanto, no dia 11 de junho de 2019, foi assinado um decreto presidencial (nº 9.831/2019) que exonerou os 11 peritos e mudou o órgão para o ministério da Economia e determinou que a participação no órgão fosse considerada “prestação de serviço público relevante, não remunerado” e que além de não receber salário, os voluntários não podem ter vínculos com “redes e a entidades da sociedade civil e a instituições de ensino e pesquisa, a entidades representativas de trabalhadores, a estudantes e a empresários integrantes do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”. Extinguiu também a exigência de critérios de raça, etnia, gênero e religião para composição do Comitê.

No mesmo dia, foi publicada uma nota do MNCPT na qual afirma que o governo agia “em nítida retaliação à atuação desses órgãos que, incansavelmente, vêm denunciando práticas sistemáticas de torturas nos locais de privação liberdade em todo Brasil, e cita entre outros, os relatórios referentes aos massacres no Sistema Prisional do Rio Grande do Norte, Roraima, Amazonas e “da atuação irregular no Ceará da Força Tarefa de Intervenção Federal do Ministério da Justiça”.

No dia 19 de junho de 2021, a ONG Human Rights Watch, também publicou uma nota em relação ao decreto, afirmando que o decreto não só enfraquece como pode inviabilizar a atuação do órgão, ao depender de voluntários que não poderão ter vinculação com organizações da sociedade civil e acadêmicas que atuam na área do combate à tortura e “eliminou a exigência de que a seleção dos peritos busque representar a diversidade de raça e etnia, de gênero e de região do Brasil”. https://www.hrw.org/pt/news/2019/06/11/331020

Outros organismos internacionais, entidades da sociedade civil, associações representantes de carreiras jurídicas e órgãos públicos também se manifestaram contra o decreto, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Dois meses depois (agosto), a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, questionou decreto quanto ao remanejamento de cargos do MNPCT para uma secretaria do Ministério da Economia, a exoneração de peritos e a retirada da remuneração, e que isso “feria princípios fundamentais como o da dignidade humana, da vedação à tortura e da legalidade”, destacando ser o trabalho dos peritos essencial e indispensável “ao combate à tortura e demais tratamentos degradantes ou desumanos em ambientes de detenção e custódia coletiva de pessoas”. E fere também os princípios da legalidade e da separação de poderes, previstos na Constituição Federal.

Depois, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma Ação Civil Pública na 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro e no dia 9 de agosto de 2019 o decreto foi suspenso e os peritos foram reintegrados (com remuneração). O juiz federal Osair Victor de Oliveira Junior, fundamentou sua decisão sobre ilegalidade do decreto afirmando que a destituição dos peritos só poderia se dá em casos de condenação penal transitada em julgado, ou de processo disciplinar, em conformidade com as Leis nos 8.112 (11/12/ 1990, e 8.429 (2/6/1992) “que legitima o pedido de reintegração dos peritos nos cargos antes ocupados, até que o mandato respectivo se encerre pelo decurso do tempo remanescente”. http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/decisao-mecanismo-nacional-combate-tortura

A Procuradoria Geral da República, PGR também entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com a ação para suspender o decreto totalmente.

Em novembro de 2021 uma frente constituída por 250 entidades da sociedade civil publicaram uma Carta Aberta na qual denunciavam que o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura estava inativo desde o dia 8 de outubro de 2021 e destacou a falta de compromisso do Executivo Federal com o tema “retirando-se da sociedade civil sua fundamental participação nas políticas de prevenção e combate à tortura no país”. As entidades também notificaram o Subcomitê de Prevenção à Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação do CNPCT.

Em janeiro de 2021, a PGR sob a gestão do procurador-geral Augusto Aras, mudou de posicionamento, passando a recomendar a rejeição da Ação de Inconstitucionalidade, argumentando que parte do decreto já tinha sido alterada, o que tornaria o processo inválido, e que haveria outros meios jurídicos para questionar “a suposta ofensa a direitos fundamentais”.

Mesmo assim, a ação foi levada adiante e o decreto foi remetido para julgamento do Supremo Tribunal Federal, que teve início no dia 18 de março de 2022 e uma semana depois (dia 25) foi formada maioria: sete dos onze ministros votaram pela inconstitucionalidade do decreto. Foram eles: Dias Toffoli (relator), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber.

Em seu voto, o relator destacou que a revogação a que se refere à PGR se deu no contexto de “sucessivas reestruturações administrativas” no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sem que tenha havido o retorno dos onze cargos em comissão para a pasta e a sua destinação aos peritos do MNPCT. Afirma ainda que a ausência de salário “desestimula a entrada de profissionais especializados no órgão, fragilizando o combate à tortura no país”, além de violar frontalmente a Constituição e esvaziar políticas públicas previstas em lei.

E ainda que mudanças na legislação devam ser feitas apenas pelo Congresso Nacional, e não por decreto presidencial, violando assim à separação dos poderes e que “Não é dado ao Chefe do Poder Executivo, sob o pretexto de exercer função meramente regulamentar, desmontar política pública instituída no intuito de dar cumprimento ao texto constitucional e prevista em compromisso internacional assumido pelo Brasil e que não se trata de uma escolha das autoridades que ocupam, em caráter eventual, os mais altos cargos da República, mas sim, de uma política de Estado, que transcende ideologias e visões de mundo, pois retira diretamente da Constituição Federal o fundamento de sua existência”.

O fato é que desde o início do governo em 2019, tem havido o enfraquecimento das atividades dos órgãos voltados para a proteção de minorias e monitoramento de violações de direitos humanos, alterando a sua composição, retirando recursos etc. Nesse sentido, é louvável a decisão do STF em barrar o decreto que, por ter como efeito prático o esvaziamento do MNPCT, e também é uma contrariedade à separação entre os poderes, pois “acaba por condenar à absoluta ineficácia uma política pública prevista em lei”.

A defesa de torturadores (e da tortura) se expressa, também, no enaltecimento de notórios torturadores e se explica pela impunidade em relação aos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar (1964-85). Houve uma anistia (e auto-anistia) em 1979, sem punições a quem praticou torturas e assassinatos e tampouco o reconhecimento de ter se cometido qualquer tipo de erros ou crimes. Em vez disso, se estimulam o ódio e o ressentimento. É disso que se alimentam os movimentos em defesa da ditadura, da tortura e dos torturadores. Daí a importância, em um governo democrático, de criminalizar a apologia da tortura, como se criminaliza a homofobia e o racismo.