Sobre o semipresidencialismo no Brasil

No dia 17 de março de 2022 foi publicado no Diário Oficial de Câmara dos Deputados, por iniciativa do seu presidente Arthur Lira, a criação de um grupo de estudos para discutir a adoção do semipresidencialismo no país. Formado por 10 deputados, de vários partidos (PSDB, Novo, Republicano, PC do B e outros) e um conselho consultivo constituído, entre outros, pelo ex-presidente Michel Temer e ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim e Ellen Gracie. O grupo tem um prazo de até 120 dias (quatro meses), prorrogáveis, se for o caso, pelo mesmo período, para apresentarem um anteprojeto de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) a ser submetido à votação no Congresso Nacional.

Esse debate sobre a adoção do semipresidencialismo antecede. Em 2017 em meio às discussões no Congresso Nacional para modificar as regras eleitorais para as eleições de 2018, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes, defendeu a sua adoção no Brasil. Ao participar de um evento sobre reforma política organizado pelo jornal O Estado de S. Paulo,  ele sugeriu a sua adoção com a justificativa de que “seria um bom passo” para o Brasil se “blindar” das frequentes crises políticas, ressaltando que dos quatro presidentes eleitos após a redemocratização, apenas dois concluíram o mandato, indicando assim a “instabilidade do sistema”.

Em caso de sua adoção, para ele, se preservaria a Presidência da República, que ficaria com a chefia do Estado e um efetivo poder moderador, assim como “preservaria também a chefia do Estado dessas crises que nos atinge”. Em 2017, ele foi o autor de uma minuta de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para adoção do semipresidencialismo com o objetivo de “aprimorar o sistema de governo”. No entanto, a proposta sequer foi discutida no Congresso Nacional.

Em 2021, o tema voltou a ser discutido. No dia 5 de julho de 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, participou do Simpósio Interdisciplinar sobre o Sistema Político Brasileiro e mais uma vez defendeu a adoção do semipresidencialismo no Brasil, que na proposta dele, seria adotado a partir de 2026. Pouco depois, em entrevista a revista Veja (11/7/21), o ministro Gilmar Mendes voltou também a defender o semipresidencialismo, afirmando que havia uma exaustão do presidencialismo de coalizão no Brasil (“esse modelo se exauriu”) e que seria bom “reduzir o número de partidos e talvez avançar para um semipresidencialismo em que o presidente mantenha determinadas e importantes funções”.

Luis Roberto Barroso e Gilmar Mendes há muito tem defendido o semipresidencialismo. Em 2006 em um artigo publicado na Revista de Direito do Estado, Luis Roberto Barroso afirmou que o semipresidencialismo neutraliza “dois problemas crônicos do presidencialismo no Brasil: a presidência imperial, plenipotenciária e autoritária de um lado, e a instabilidade política do governo por outro lado, nas hipóteses em que o desgaste político faz erodir seu fundamento de legitimidade e (…) incrementa-se a responsabilidade política do Parlamento, que já não poderá se ocupar apenas da crítica, mas deverá participar também da construção do governo”. Para ele, seu potencial seria propiciar governabilidade “pela separação adequada entre atos de Estado e ação política” e assim atuar como “o guardião da estabilidade e da ordem constitucional”. https://www.migalhas.com.br/quentes/281033/ministro-barroso-defendeu-em-2006-o-semipresidencialismo-no-pais

Nesses termos, uma das vantagens do semipresidencialismo seria possibilitar maior equilíbrio entre o Poder Executivo e o legislativo sem uma concentração de poder, como no presidencialismo, e de um maior compartilhamento das decisões políticas entre esses dois poderes. Seria uma espécie de ‘antídoto’ às recorrentes crises cíclicas do sistema político (presidencialista) brasileiro, que na sua interpretação leva a instabilidade política.

Mas, o que é o semipresidencialismo e por que esta proposta ressurge agora?

No artigo Nem presidencialismo nem parlamentarismo, publicando na revista Novos Estudos CEBRAP (n.35, março de 1993), o cientista político italiano Giovanni Sartori (1924-2017) diz que diferente do presidencialismo e do parlamentarismo, no semipresidencialismo o poder é compartilhado entre um presidente eleito pelo povo, “que cumprirá um mandato fixo” e um primeiro-ministro e gabinete dependente da confiança parlamentar (nomeado pelo presidente e chancelado pela maioria do parlamento).

No semipresidencialismo, o presidente da República é o chefe de Estado, e o Primeiro-Ministro o chefe de Governo. Mas diferente do parlamentarismo no qual a chefia de Estado tem funções meramente formais como as de representação internacional, assinatura de tratados, geralmente a pedido do Primeiro-Ministro, no semipresidencialismo teria outras funções como nomear o Primeiro-Ministro; dissolver o Parlamento; propor projetos de lei; conduzir a política externa; exercer poderes especiais em momentos de crise; submeter leis à Corte Constitucional; exercer o comando das Forças Armadas; nomear alguns funcionários de alto-escalão; convocar referendos, enquanto o primeiro-ministro cuida do dia a dia da administração pública.

No livro Xeque-mate: uma análise comparativa dos regimes semipresidenciais (Edições Rolim, Lisboa, Portugal, 1979) Maurice Duverger fez um levantamento dos países que naquele momento adotavam o semipresidencialismo e não eram muitos: Finlândia (1919), Irlanda (1937), Áustria (1945), França (1958, com a V República) e Portugal (1976). Depois da publicação do livro, vários países também o adotaram, como ex-colônias portuguesas na África (Cabo Verde e Moçambique em 1990) assim como a Croácia, em 1990, Bulgária e Eslovênia em 1991, Azerbaijão em 1995, Bielorrússia em 1996, Eslováquia em 1999, Timor-Leste em 2012 e Egito 2014 (estes dados e de outros países estão no trabalho de Raysa Dantas Loureiro, da Universidade Federal do Espírito Santo, apresentado no III Seminário de Ciências Sociais, realizado entre os dias 12 a 14 de novembro de 2018. A autora informa ainda que o continente africano tem o maior número de países semipresidencialistas, 22, seguidos pela Europa com 21 (a Ásia tem 6 e a América, 2).

O livro O semipresidencialismo nos países de língua portuguesa (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009, organizado por Marina Costa Lobo (Universidade de Lisboa) e Octavio Amorim Neto (Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas – EBAPE/Fundação Getúlio Vargas, RJ), analisam a difusão dos modelos constitucionais no mundo e mostram como se entrelaça com as relações culturais entre os Estados. E citam como exemplos Portugal e a difusão da matriz semipresidencial do seu regime político entre as suas ex-colônias e informam que sete de oito adotaram o semipresidencialismo como forma de governo. Outro exemplo é o modelo de parlamentarismo de Westminster, no qual a maior parte dos regimes em Estados que integraram o Império Britânico são também parlamentaristas. Da mesma forma os países sob a esfera de influência dos Estados Unidos, com o presidencialismo, implantada tanto na América Latina (inclusive no Brasil) como em partes da Ásia.

Para Giovanni Sartori “em geral, temos razão nas críticas que fazemos ao sistema político sob o qual vivemos, mas freqüentemente erramos ao avaliar as alternativas e os benefícios almejados. Creio que os argumentos contra os dois extremos, o presidencialismo puro e o parlamentarismo puro, são fortes. Porém, estou pronto a admitir que os argumentos a favor do semipresidencialismo não são fortes”.

Considerando as circunstâncias em esse tema volta ao debate e os argumentos que o justificam, a adoção do semipresidencialismo deveria vir, se fosse o caso, no bojo de outras alterações no sistema partidário e eleitoral, que não parece ser o caso. Como ter um semipresidencialismo com a fragmentação partidária que temos no Brasil, por exemplo?  É certo que o sistema presidencialista brasileiro, como diz o ministro Luis Roberto Barroso “tem produzido uma relação conturbada entre Executivo e Legislativo, assinalada por conflitos e cooptações, com frequente sucumbência das virtudes republicanas” e nesse sentido, para ele, o semipresidencialismo “teria a virtude de aprimorar o código de relação entre o governo e o Parlamento e de facilitar o exercício do poder”.

No entanto, o problema é que a solução poderia estar tanto no presidencialismo como também no parlamentarismo, se fosse o caso. Para aperfeiçoar esse sistema, é necessária uma ampla reforma política, que implicaria em mudanças substanciais tanto no sistema partidário como no sistema eleitoral, tem sido debatida no Congresso Nacional (e fora dele também) desde a promulgação da Constituição de 1988 e nunca foi aprovada (a não serem algumas mudanças pontuais, como fidelidade partidária, proibição de coligações em eleições proporcionais, fim de financiamento de empresas de campanhas eleitorais etc., que são importantes, mas não suficientes).

E mais: a existência exitosa do semipresidencialismo em outros países não significa que será no Brasil, como também do presidencialismo ou parlamentarismo. É preciso considerar qual o modelo o país adotará porque há diferenças entre os países que o adotam, como França e Portugal, por exemplo, que são totalmente distintos, assim como são diferentes da Finlândia, Cabo Verde e Áustria. Se não há condições, urgência e sentido em se adotar o semipresidencialismo no Brasil, talvez o mérito dessa discussão seja a constatação de que o sistema político precisa ser aprimorado, mas não necessariamente adotando outro sistema de governo. Hoje, essa discussão revela mais casuísmo e claramente uma estratégia para enfraquecer um eventual governo Lula, a considerar sua provável vitória (se permitirem concorrer, vencer e assumir) nas eleições presidenciais.  Embora a proposta do presidente da Câmara seja a adoção a partir de 2030, não seria nenhuma surpresa que, como esse Congresso, ser aprovado para antes.

No ato de filiação de Roberto Requião em Curitiba no dia 18 de março de 2022, Lula condenou o que chamou de novo ataque à democracia e a soberania do povo brasileiro, a transformação do presidente em uma figura decorativa e considerou esta proposta como “o mais novo golpe contra o povo”, e que “você elege um presidente, pensa que o presidente vai governar, mas quem vai governar é a Câmara, com um orçamento secreto para comprar o voto dos deputados”.

Como disse Bernardo de Mello Franco no artigo “Semipresidencialismo é golpe no eleitor” (O Globo, 20/3/2022) “A ideia de esvaziar os poderes da Presidência ressurge de tempos em tempos. Suas reaparições costumam coincidir com o favoritismo de candidatos da esquerda. Em 1993, o parlamentarismo foi abraçado por setores que temiam a vitória de Lula no ano seguinte. Agora ressurge às vésperas de outra eleição em que o petista larga na frente”. E que o presidencialismo brasileiro “tem falhas e vícios conhecidos. Nenhum deles será resolvido com um assalto à soberania popular”.