Tolerar intolerantes?

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa tolerância éa “tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às nossas”, sendo seu contrário, a intolerância, característica do “ fanático, implacável e inflexível”.

Um dos grandes defensores da tolerância foi Voltaire (François-Marie Arouet), filósofo e escritor francês (21 de novembro de 1694 – 30 de maio de 1778). Ele publicou em 1763 o livro Tratado sobre a tolerância considerado um marco em defesa da tolerância. Trata do caso de Jean Calas, um comerciário protestante da cidade de Toulouse (França) que no ano anterior, 1762, foi acusado de assassinar o filho, que queria se converter ao catolicismo. Ele foi julgado e sentenciado à pena de morte, sendo barbaramente torturado antes da execução. Analisando os fatos, Voltaire ficou convencido da sua inocência e escreveu o livro denunciando a injustiça. Era um momento em que havia inúmeros conflitos e guerras religiosas, e não apenas na França entre protestantes (chamados de huguenotes) e católicos.

O livro teve enorme repercussão e em 1765 Jean Calais foi postumamente inocentado. O que Voltaire defendeu foi o respeito e tolerância aos credos, a liberdade religiosa.

Em outro livro, O túmulo do fanatismo (publicado no Brasil em 2006 pela editora Martins Fontes) afirma que o fanatismo religioso era o pior inimigo da razão.

Os exemplos na História – que antecede e vai muito além do período de vida de Voltaire – de intolerância religiosa está presente até em nossos dias. As cruzadas foram um dos muitos exemplos na História de intolerância religiosa que levaram à morte milhares de pessoas. Quando começaram, tinham por objetivo recapturar Jerusalém e a Terra Santa do domínio muçulmano. Foram oito expedições militares organizadas entre 1095 e 1291 pelas potências cristãs europeias, com milhares de vítimas.

Da mesma forma e com duração maior, a chamada Inquisição , criada na Idade Média (século XIII) pela Igreja Católica e que durou 588 anos, com milhares de pessoas assassinadas, torturadas, empaladas, queimadas, decapitadas e enforcadas “em nome de Deus”.

Oficialmente o Tribunal do Santo Ofício foi extinto no dia a 31 de Março de 1821 (uma referência importante para compreender a inquisição, é o livro História das inquisições – Portugal, Espanha e Itália séculos XV-XIX – de Francisco Bethencourt (Editora Companhia das Letras, 2000). Trata-se de um amplo e documentado estudo, que mostra como se deu esse processo nos países analisados, no qual a intolerância religiosa era um dos seus principais componentes.

Mas a intolerância religiosa não se circunscreve nem a esses países, nem ao mesmo período, nem a igreja católica, como mostra entre outras referências os livros Violência e religião – cristianismo, Islamismo e Judaísmo: três religiões em confronto e diálogo, organizado por Maria Clara Lucchetti Bingemer (Editora PUC Rio/Edições Loyola, 2001) e Terror em nome de Deus: por que os militantes religiosos matam de Jessica Stern (Editora Barcarolla, 2004).

Conflitos que continuam a existir, como as diversas guerras no século XX e algumas que ainda estão em curso no século XXI. São muitas as guerras e conflitos visando eliminar os “indesejáveis”.

Umberto Eco ao tratar da intolerância no livro Migração e Intolerância (Editora Record, 2020) se refere as diversas formas de fundamentalismo (católico, protestante, muçulmano etc.) e afirma que o fundamentalismo ocidental moderno nasce nos ambientes protestantes dos Estados Unidos no século XIX e caracteriza-se pela interpretação literal das chamadas ‘escrituras sagradas’ (bíblia). Para ele, o que faz a intolerância ser mais perigosa é o fato de que não pode ser refutada com argumentos racionais e que a irracionalidade veta qualquer possibilidade de diálogo.

Mas não se trata apenas de intolerância religiosa. Há outras formas e uma delas hoje pode ser expressa em relação aos refugiados em vários países do mundo. Segundo a Agencia da ONU para Refugiados (ACNUR) os refugiados “são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados”. E segundo a entidade, há em torno de 25,4 milhões de pessoas em todo o mundo nessa situação, a maioria vivendo precariamente em acampamentos improvisados, com fugitivos de guerra, de instabilidade econômica e perseguição política.

Em relação aos imigrantes diversos países europeus, têm adotado restritivas para a sua entrada, com apoio de partidos de direita e extrema direita, que defendem o fechamento das fronteiras (nos Estados Unidos em 1994 foi iniciada a construção de um muro para evitar a entrada de imigrantes através do México) e expulsão dos imigrantes.

Outro aspecto relevante ao se tratar do tema são as formas de intolerância impulsionadas através das redes sociais. Para citar apenas um entre muitos exemplos, no Brasil, de acordo com dados da ONG Safernet Brasil – fundada em 2005 e que se tornou uma referência no enfrentamento aos crimes e violação dos Direitos Humanos na internet e em favor dos direitos digitais – há um aumento constante de denúncias às diversas formas de intolerância e discriminação de páginas que divulgaram conteúdos racistas, misóginos, homofóbicos e xenofóbicos (uma matéria publicada no portal Terra, assinada por Pedro Knoth em 7 dez 2021, informa que o fundador e presidente da Safernet Brasil, Thiago Tavares, divulgou um documento no qual afirma que estava se autoexilando na Alemanha depois de receber ameaças de morte por participar de um evento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre desinformação nas eleições, especialmente às referências ao crescimento e atuação de vários grupos neonazistas . Segundo ele, na citada matéria “Existem hoje, no Brasil, centenas — e literalmente centenas — de células extremistas em atividade. Esses grupos não aceitam e nem conseguem conviver com a diversidade, e eles defendem a violência e propagam o ódio contra pessoas em razão da sua raça, cor, religião, orientação sexual, deficiência, origem nacional e regional”. https://www.terra.com.br/noticias/tecnologia/fundador-da-safernet-deixa-o-brasil-apos-ameacas-de-morte,67475dc93613ddfeb10eff6b1868fd64fu8p1wv7.html

É evidente que não foi a internet quem criou a intolerância, mas encontrou na sociedade brasileira um terreno fértil para seu desenvolvimento, ampliando os discursos de ódio e intolerância, facilitada pela possibilidade de anonimato atrás das telas dos computadores. Pessoas cordatas no dia a dia às vezes se transformam em ‘demônios’ quando estão sozinhas em seus quartos para expressar seus ódios, preconceitos e intolerância. Quando posta ou compartilha, está apenas reforçando e reafirmando o que ela é de fato e não o que muitas vezes aparenta ser.

As redes sociais também contribuem para a polarização política, criando o que se pode chamar de bolhas virtuais, com mecanismos que identificam os usuários, isolando-os de opiniões diferentes e assim fortalecendo comportamentos intolerantes.

Mas a intolerância transcende as redes sociais e hoje no Brasil com um governo no qual a intolerância com os que não concordam ou apoiam é fato, assim como os riscos à própria democracia, com sistemáticos ataques ao Estado Democrático de Direito.

Em 2019, em pouco mais quatro meses após ter assumido à presidência da República ( 26 de abril) a Aliança Nacional LGBTI publicou uma nota de repúdio às declarações preconceituosas, machistas e homofóbicas do presidente da República que havia afirmado, no dia anterior, num café da manhã com jornalistas “Quem quiser vir aqui (no Brasil) fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro”.

Na nota, exige-se o respeito à diversidade e a não aceitação de “atitudes e ações ligadas ao racismo, machismo, discriminações contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexuais (LGBTI+), nem quaisquer outras pautas que promovam o ódio”.

Umberto Eco afirma que a intolerância deve ser combatida através de uma educação constante, que tenha início na infância “antes que ela se torne uma casca comportamental dura demais”. A questão é: como fazer isso em países em que os responsáveis pelo sistema educacional são eles mesmos, além de incompetentes, intolerantes?

De qualquer forma, é de fundamental importância declarar guerra a intolerância como parte de uma luta mais geral, antes que os intolerantes bloqueiem qualquer possibilidade nesse sentido. Uma sociedade intolerante é incapaz de conviver com as diferenças. O ódio é um sentimento que cega as pessoas e ajuda no processo de erosão da democracia, que tem como um dos seus fundamentos a convivência dos diferentes.

Intolerância é incompatível com a democracia, daí a urgência (e necessidade) dos democratas (e tolerantes) saber distinguir entre o tolerável e o intolerável, buscando um padrão de civilidade, de respeito aos direitos humanos, de se educar para a diversidade e aos valores que deveriam norteiam a sociedade, como a convivência democrática e repudiar os intolerantes, que fomentam preconceitos, ódio e a violência contra os que são e/ou pensam diferente. A intolerância não deve ser tolerada. Os tolerantes não devem tolerar intolerantes.