Uma reflexão sobre a profissão de fé do Vigário Saboiano
Na coluna de hoje trago uma reflexão sobre a obra “Emilio” ou “Da Educação”, de Jean-Jacques Rousseau, que foi escrita no século XVIII, auge do Iluminismo na Europa, e que constitui, segundo o autor, uma “coletânea que foi iniciada para agradar a uma boa mãe que sabe pensar” (ROUSSEAU, 1999, p. 5). É, em suma, um tratado educacional e, mais profundamente, um tratado político sobre a educação escrito em forma de romance. O texto traz severas criticas a educação tradicional da época que, para Rousseau, era um modelo muito racionalizado e muito impositivo. Para ele, a educação deveria seguir o ritmo da natureza, com afeto e simplicidade, pois “as crianças se acham em estado de aprender” (ROUSSEAU, 1999, p. 6) e é a educação primeira a que mais importa, devendo ser leve, observacional e natural.
A obra, que também pode ser considerada um relato autobiográfico, traz como personagem principal o órfão pertencente à nobreza de nome Emílio que é orientado por seu preceptor. Nela Rousseau delineia o caminho educacional do personagem fictício que dá nome à obra, da infância até a fase adulta, a partir dos preceitos da natureza.
Rousseau inicia o primeiro capítulo afirmando que nas mãos do homem, tudo degenera. Segundo ele, o homem não permite que a natureza siga seu curso natural, pois o homem “tem que moldá-lo a seu jeito, como uma árvore de seu jardim” (ROUSSEAU, 1999, p. 9). No entanto, por nascermos fracos, necessitamos de força, “nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação. Essa educação nos vem da natureza, ou dos homens ou das coisas” (ROUSSEAU, 1999, p. 10).
De forma generalista, o que podemos perceber é que Rousseau parte do pressuposto de que o homem nasce naturalmente bom e que a sociedade é quem o corrompe, por isso, seu principal objetivo é evitar que a criança se torne má. Em resumo: o homem da natureza é bom, enquanto que o homem social é o sujeito corrompido. Apesar disso, Rousseau assegura que a sociedade é o único lugar em que o homem natural pode se tornar moral e compensar os processos de corrupção. Para a efetividade da ação pedagógica proposta por ele, a criança deveria ser entendida em sua complexidade, devendo ser tratada como criança, mas sem os excessos que a corromperiam. Talvez aqui se veja um pouco da educação aristotélica, da doutrina do justo meio presente na Ética a Nicômaco.
Essa educação proposta por Rousseau, apesar de voltada para a natureza, cede em alguns aspectos aos paradigmas sociais da época. Um exemplo é o fato do autor acreditar que as mulheres devem ser educadas de forma diferente dos homens, pois a mulher nasceu para ser submissa ao marido, para casar e ser mãe, o que é um tanto machista para um visionário, mas que é aceitável para as condições sociais e políticas da misoginia de uma época totalmente submissa ao patriarcado. Mas a ideia de que o homem nasce e morre preso às instituições e os constrangimentos a que estamos sujeitos desde o nascimento é, inegavelmente, uma contribuição fantástica para o período.
Os ensinamentos sobre a religião natural constantes na narrativa do vigário, trazem algumas incongruências e certo grau de inflexibilidade ao validá-la como sendo a única possível e verdadeira em detrimento de outras religiões. De certa forma, há uma legitimação do cristianismo hegemônico de uma época que ainda traz fortes resquícios da patrística e da escolástica ao se pregar uma uniformidade de crença. Esse sentimento do vigário, que também traz um pouco do espírito do renascimento, é perfeitamente compreensível como sendo um espírito de época. E é nesse conjunto de intersecções de heranças de diferentes períodos filosóficos que o vigário também abre uma brecha na educação do jovem Emilio para romper com os paradigmas já estabelecidos histórico-culturalmente ao afirmar que “é de uma vaidade maluca imaginar que Deus se interesse tanto pela forma da vestimenta do padre, pela ordem das palavras que ele pronuncia, pelos gestos que faz no altar, por todas as suas genuflexões” (ROUSSEAU, 1999, p. 345). Os paradigmas dos ritos e as litúrgias ele julga como completamente desnecessários, mas o mito cristão permanece, muito embora seja observável que os questionamentos, a dúvida e o ceticismo estejam presentes nele, como na passagem seguinte: “dizer enfim porque Deus escolhe, para atestar sua palavra, meios que têm eles próprios tanta necessidade de atestação, como se brincasse com a credulidade dos homens e evitasse propositadamente os verdadeiros meios de os persuadir” (ROUSSEAU, 1999, p. 348). A fé proposta a partir da religião natural, portanto, não é uma fé cega; é uma fé que questiona dogmas e axiomas até então imponderáveis, mesmo que se permaneça em nível metafísico e que ainda conserve parcialmente a venda nos olhos.
Interessante perceber a proximidade entre o Emilio e o Contrato Social de Rousseau, quando na narrativa se observam as inclinações naturais a que tende a humanidade maniqueísta, onde o homem naturalmente tende ao bem, à justiça e à equidade, mas degenera ao sair das mãos do criador e acaba por se corromper. Esse duelo entre a razão e as paixões que corrompem a humanidade deve ser contornado a partir dos ensinamentos morais e intelectuais presentes na criação do demiurgo, afinal, é “a ordem inalterável da natureza que mais bem mostra a sábia mão que a rege” (ROUSSEAU, 1999, p. 349).
A relação entre a religião natural e os ensinamentos morais presentes na vida do Emílio estão vinculadas diretamente a um Deus clemente e bom, contrário a tradição da igreja da época, que pregava o medo como sendo um carrasco que aterrorizava através da possibilidade de condenação ao fogo eterno. Um “Deus colérico, ciumento, vingativo, parcial, odiando os homens, um Deus da guerra e dos combates, sempre disposto a fulminar, sempre falando de tormentos, de castigos e vangloriando-se de punir até os inocentes” (ROUSSEAU, 1999, p. 350). Esse Deus incompatível com a natureza é também incompatível com a razão e, por conseguinte, com a religião natural, pois “o ministro da verdade não tiraniza minha razão, ilumina-a” (ROUSSEAU, 1999, p. 351) e a razão é contrária à insensatez. Aqui ver-se a influencia do iluminismo mais uma vez.
O ceticismo do Emílio, longe da descrença, questiona as formas de construção do tecido social onde as paixões perniciosas, frutos do homem social, devem ser evitadas; questiona ódio e o preconceito entre as civilizações e até a forma colonizadora do cristianismo (que usou do iluminismo para legitimar a subalternização dos povos negros no período da diáspora) e do saber intelectualizado enclausurado nos livros que ignora a liberdade da natureza humana. Dentre os questionamentos sociais relevantes é interessante a forma como surge, dentre eles, a figura da mulher em relação a posição da igreja a partir do seguinte questionamento: “Que fizeram as mulheres dessa parte do mundo para que nenhum missionário lhes possa pregar a fé? Irão todas elas para o inferno por serem reclusas? (ROUSSEAU, 1999, p. 358). Esse trecho da obra de Rousseau denota o patriarcalismo hegemônico de uma época, de um igreja e de uma sociedade excludente, sendo, portanto, um trecho que deve ser destacado como parte de um discurso precursor de uma revolução que estaria por vir, muito embora houvesse no seu pensamento o ranço da mulher que nasceu para servir ao marido
O objetivo geral é formar o homem sensível que possa compreender as misérias humanas, e que, sendo sábio, possa dar sua contribuição à reconstrução do mundo social. Rousseau critica o modelo social estabelecido e suas diferenças abismais que geram miséria e desigualdade. Apesar disso, o Emílio traz os estigmas próprios da sociedade na qual o autor está inserido. É nesse contexto que, criticando os dogmas e a autoridade despótica da Igreja, como o fizeram os iluministas, Rousseau se apresenta como um grande teísta. Ele expõe uma maneira própria de se relacionar com a divindade a partir da religião natural que deve ser apresentada ao jovem adolescente “na idade crítica em que o espírito se abre para a certeza, em que o coração recebe sua forma e seu caráter, e em que o homem se determina para toda a vida, pelo bem ou pelo mal” (ROUSSEAU, 1999, p. 366), momento em que a alma não foi corrompida e ainda está flexível.
A exaltação a Jesus Cristo é também algo que deve ser destacado, principalmente porque, nesse momento, há menção ao filósofo grego Sócrates em uma clara analogia na qual não há nivelação possível: “Que preconceitos, que cegueira é preciso ter para comparar o filho de Sophronisque ao filho de Maria! Que distância de um ao outro!” (ROUSSEAU, 1999, p. 362). A moral socrática se apequena em relação a moral de Jesus e o autor completa sua crítica ao filósofo grego: “se a vida e a morte de Sócrates são de um sábio, a vida e a morte de Jesus são de um Deus” (ROUSSEAU, 1999, p. 362). O vigário legitima o Evangelho contido no livro sagrado, mas expõe a existência de suas inúmeras contradições, que na perspectiva de um cético racionalista deveriam ser examinadas, no entanto, aqui são vistas, mas não questionadas: “Que fazer em meio a todas essas contradições? Ser sempre modesto e circunspecto, meu filho; respeitar em silêncio o que não se pode rejeitar, nem compreender, e humilhar-se diante do grande Ser, o único que sabe a verdade” (ROUSSEAU, 1999, p. 363). E num gesto de leniência, ou mesmo de subserviência, o vigário deixa claro que seu ceticismo tem limites, pois que ele não procura saber das coisas que não lhes servem à conduta e ao caráter moral que lhe guia.
O vigário arremata seu discurso reafirmando que “um coração justo é o verdadeiro templo da Divindade” (ROUSSEAU, 1999, p. 367) e nenhuma virtude existe sem a fé. Esses são sentimentos que devem ser cultivados intimamente a partir do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Ele lembra ainda que “o abuso do saber produz a incredulidade” (ROUSSEAU, 1999, p. 369) e a “orgulhosa filosofia leva ao fanatismo” (ROUSSEAU, 1999, p. 369/370), portanto, esses extremismos devem ser evitados e combatidos através da proclamação de Deus entre os filósofos e da humanidade entre os intolerantes, a partir das boas ações, da conduta moral e da verdade. Assim o vigário encerra, nesse trecho, sua profissão de fé.
REFERÊNCIA:
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio; trad.: Roberto Leal Ferreira – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 342 – 371
Parabéns, amiga,por esta avaliação tão lúcida e profunda. Já a estou compartilhando com amigos de longas datas e de grandes distâncias. Antônio Belo(Palmas) e Inês Oludê( Bruxelas). Abraços. Paula