A tragédia como notícia e a desfiguração da realidade
*Por Joana Belarmino
Enquanto faço leituras de preparação das minhas aulas da semana, repercute em mim a tragédia que tomou conta do noticiário televisivo paraibano: o suposto assassinato de uma criança de um ano e três meses, provavelmente pela mãe, através de mais um cruel episódio de violência doméstica.
Tento refletir sobre o caso, e mais particularmente sobre a sua cobertura, no âmago mesmo da profissão jornalística. A formação dos profissionais de jornalismo esteve e ainda vive atravessada por dicotomias importantes: teoria versus prática; formação universitária versus dom e vocação; jornalismo informativo versus jornalismo sensacionalista; notícia informativa versus sensacionalismo são algumas dessas dicotomias presentes na história da profissão.
Na atualidade, é certo que há um predomínio do jornalismo informativo e de serviços, e, ao lado deste, um gosto pelo sensacionalismo em muitos veículos de mídia. Mas o que isso tem a ver com o acontecimento trágico da semana? O jornalismo errou na sua cobertura?
Do ponto de vista da atual tendência para uma cobertura informativa dos fatos, o jornalismo certamente fez o que estava determinado fazer. Trouxe o ocorrido com seu lead, ouviu autoridades, escutou as vozes da comunidade, apresentou o quadro fornecido pelos médicos sobre a morte da criança. Deu visibilidade a um fenômeno sinistro, muitas vezes perpetrado dentro das casas, sem que se tome conhecimento do terrível desfalque que se faz à infância, ao direito de viver, com dignidade, acesso aos bens e serviços, e, mais que tudo, acesso ao amor e à proteção familiar.
Ao escutar a cobertura, entretanto, percebi que algo estava a escapar-se irremediavelmente das notícias. Pensei que a imagem daquela mãe era como que desfigurada por uma sombra. Na tevê, tudo estava certo. A técnica, a passagem para o repórter, os depoimentos, o breve suspiro dos âncoras dos telejornais. As atualizações davam conta do enclausuramento da mãe, no cemitério, a cobertura dava visibilidade à revolta dos moradores da comunidade. Por que então persistia em mim essa zona de sombra?
Segundo o que penso, a sombra, a falta irremediável está no jornalismo informativo como tal. O jornalismo informativo, essa fábrica de moer os acontecimentos, e de extrair dos mesmos, a sua face mais objetiva, mais superficial, aquela face particular que possa entesourar o fato na coleção dos outros fatos, da violência doméstica, do tráfico de drogas nas periferias, das ocorrências policiais de toda ordem. O que se escapa ao jornalismo informativo, é o profundo mal-estar que envolve as relações sociais, e que se perpetua ad infinitum, na história da sociedade, nos seus processos de distribuição das riquezas, na ausência do estado em políticas de acesso à educação, à saúde, proteção à infância, em periferias que distam de nós em míseras meias horas, se tanto, mas acham-se encobertas por uma zona profunda de outros distanciamentos.
Fosse o jornalismo informativo revolver na moenda do noticiário os restos desprezados desses acontecimentos, encontraria ali matéria sombria, repleta de séculos e séculos de ausências inarticuladas, naturalizadas, cheia das sílabas inteligíveis do desespero, que não cabem na moldura do lead, nas suas seis perguntas objetivas e previsíveis.
O enclausuramento da mãe é o ponto final da notícia, para o jornalismo informativo. Não se falará do abandono paterno, nada se dirá dessa mulher terrível, na sua vestimenta de presidiária, ocultando no corpo e na alma, todo um solo feito das misérias que foram tecendo, vestindo e cimentando o seu ser de agora, esse ser que não pôde proteger da morte a criança pequena.
*Joana Belarmino é professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba e vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFPB.
Coluna publicada originalmente no Blog do Observatório Paraibano de Jornalismo