A humanidade à luz dos sentimentos e da práxis do Ubuntu
Os adágios populares foram, durante muitos séculos, caminhos que pavimentaram o conhecimento a partir do senso comum. Os adágios, também chamados de ditados populares, são frases curtas que transmitem sabedoria popular fundamentadas em experiências e observações cotidianas e que serviam e ainda servem, para algumas pessoas, como guias para um determinado modo de pensar ou agir, sendo, portanto, conselhos práticos para diversas situações da vida cotidiana.
Há alguns anos, conversando com uma senhora conhecida, ela veio com o seguinte ditado: “filha, quem é ruim não pode ser bom a vida inteira!” Confesso que sempre pensei a frase na perspectiva da frase “O homem é o lobo do homem”, um adágio popularizado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, na obra Leviatã, que significa que, em seu estado natural, sem leis ou governo, o ser humano é egoísta e violento, colocando seus próprios interesses acima dos outros, e que, por isso, vive em constante conflito, e que, na ausência de um poder central, os indivíduos buscarão satisfazer seus desejos à custa dos outros, levando a uma “guerra de todos contra todos”. Muitas pessoas consideram que a visão de Hobbes sobre a natureza humana é deveras pessimista, tendo em vista que o ser humano também é capaz de altruísmo e empatia.
Por outro lado, o filósofo Jean Jacques Rousseau apresentou uma visão mais otimista da natureza humana, defendendo que o homem é bom por natureza e que a sociedade o corrompe, e é nestas circunstancias que indivíduo reprime sua natureza e suas verdadeiras inclinações. Nesse aspecto o sujeito seria o “bom selvagem” inocente e incapaz de praticar o mal, assim como os outros animais.
O filósofo John Locke, por outro lado, argumenta que o homem é um ser social e racional, com uma inclinação natural para a paz e a cooperação. O filósofo contratualista apresenta uma visão otimista da natureza humana. A criação da sociedade civil, para ele, tem como finalidade a proteção dos direitos naturais dos indivíduos e a segurança de uma vida em sociedade harmoniosa.
As três visões dos filósofos para ler a frase “filha, quem é ruim não pode ser bom a vida inteira!” me mostram primeiramente que o tempo faz com que as pessoas se revelem. Se as pessoas se revelam, quer dizer que elas têm uma essência imutável, então, nesse sentido, Hobbes estaria certo: em um dado momento o lobo se revelaria, mas, por outro lado, a frase excessivamente determinista, nega a capacidade humana de mudança e escolhas. Então creio que a frase não faria sentido em outros aspectos como na filosofia de Rousseau e de Locke, tendo em vista que, se a pessoa pode ser corrompida pela natureza (Rousseau) ou se a pessoa tem uma inclinação natural para a paz (Locke), mas sendo ele um empirista, acreditava que o comportamento bom ou ruim é resultado das experiências e, nesse caso, a pessoa pode escolher porque é dotada de livre arbítrio.
Mas uma análise sobre a natureza humana não pode e nem deve ser simplista ou ter perspectivas únicas. Aliás, apesar dos três filósofos citados terem contribuído imensamente com o pensamento sobre a humanidade, há algo que, fora dos conceitos eurocêntricos, me faz suspirar de esperança pela humanidade, ainda, tendo em vista que o eurocentrismo se mostra insuficiente em muitos aspectos. E digo ainda porque nesse ritmo acelerado de redes sociais, de pessoas que vestem capa de herói, mas agem como canalhas, de discursos cheios de ódio e inveja, às vezes bate um desanimo e um desespero. Essa coluna tá quase um desabafo hoje! Mas na percepção de uma filósofa, esse mundo de hoje não é para amadores. Mas voltando aos conceitos que fogem do eurocentrismo, há, na filosofia africana, um termo do qual já falei muitas vezes: Ubuntu. E é nele que tenho depositado minhas esperanças nas pessoas, tendo em vista que seu conceito fundamental gira em torno da compreensão de uma ontologia, uma ética e uma epistemologia, sendo, portanto, mais abrangente que a Filosofia estabelecida na tradição ocidental por compreender uma cosmovisão onde a antropologia, a sociologia, a política e a economia encontram lugar para se expressar (Kakozi, 2018). Há no Ubuntu um ethos relacionado à alteridade, comunidade, espiritualidade, estes por sua vez, se relacionam com o passado e com o ciclo das existências futuras, portanto, com a ancestralidade, o que confere um caráter altamente complexo de uma ontologia filosófica cujo arcabouço está além das categorias tradicionais ocidentais.
No arcabouço filosófico africano, a palavra Ubuntu dá a filosofia um caráter humano e situa o sujeito em um campo ético que se estabelece entre as relações. Estas relações, por sua vez, se estabelecem entre humanos, de uma forma geral, e entre humanos e não-humanos, de modo abrangentemente humanista, considerando a empatia, a alteridade, a compaixão, a solidariedade, a ancestralidade e a espiritualidade, como sendo parte desse fundamento relacional, fazendo com que o Ubuntu conecte-se ao sensível e ao inteligível simultaneamente, fato este que se choca com o conceito elegido pelo pensamento filosófico eurocêntrico.
Diante de tudo que foi exposto, considero que a filosofia africana tem muito a nos ensinar sobre nós mesmos, aliás, preciso registra que essa frase foi formulada a partir de uma pergunta feita por uma amiga e minha ex-orientadora de mestrado e doutorado, a professora Dilaine Soares Sampaio, a quem agradeço sempre por toda construção de nosso Ubuntu que ultrapassam os anos da academia. É na perspectiva do Ubuntu enquanto uma práxis que acredito que as pessoas podem e devem mudar, se assim o desejarem, pensando no bem da coletividade, pois se todos estão bem, na perspectiva do ubuntu, eu estou bem também.
Então, voltando à frase: “filha, quem é ruim não pode ser bom à vida inteira!”, eu diria que quem é bom, pode se tornar melhor através de uma vida inteira dedicada a coletividade, sem contratos sociais ou sem revelações bruscas porque Ubuntizar-se é humanizar-se através do outro, mas para se tornar uma pessoa melhor é preciso querer SER melhor, querer ser bom e agir conforme os princípios de uma boa conduta dentro da coletividade, pois infelizmente há pessoas que se regozijam no mal e quanto mais o fazem, mais querem fazer porque criam uma cultura do mal. Se essas pessoas não querem ser boas e agem conforme uma cultura nefasta de maldade, elas desarmonizam, na concepção filosófica do Ubuntu, a energia, o axé que move o cosmos e que move a nós mesmos. Se nos deixamos desarmonizar, adoecemos mentalmente e certamente, de modo psicossomático, adoecemos fisicamente. A melhor coisa, em casos de pessoas que agem de modo nefasto, que não querem mudar pensando no bem comum e no bem em si mesmo, é afastar-se delas para manter as nossas energias, a nossa psique ou, pensando ocidentalmente, o nosso estado de bem estar mental, organizados e equilibrados, pois, como afirma a passagem bíblica que pode ser considerada um adágio, “Afaste-se do mal e faça o bem; procure a paz e faça tudo para alcançá-la” (Pedro 3:11).
E pensando em outro adágio popular, atribuído ao filósofo Confúcio, que diz que “Não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você”, acredito que o conceito de Ubuntu, nesse caso, cai como uma luva e, dessa forma, é que me humanizo através de uma práxis norteada pela ética do bem comum, tendo em vista que Ubuntu é uma constante humanização do ser através do outro. No entanto, é sempre importante ressaltar que essaconstante humanização não reside em palavras vazias, mas em ações cotidianas que busquem que a pessoa se faça melhor a cada dia, por isso, nem todo mundo que fala em Ubuntu, vive o Ubuntu! É preciso perceber a relação entre ação e palavra porque Ubuntu é, sobretudo, uma práxis, tendo em vista que estudar e conhecer o seu conceito não torna ninguém mais humano, e por ser uma práxis, estando relacionada a uma ética, aos deveres e obrigações morais com o coletivo, uma pessoa que age de forma não generosa, não solidária ou não empática na comunidade, ou seja, que age de forma má, perde sua humanidade, pois “agir mal é perder seu ubuntu” (Kakozi, 2019, p. 10). De tal modo, Ubuntu é uma ação racional que existe à luz dos sentimentos de afeto e respeito, de alteridade e empatia, e que mostra que a humanidade se faz sendo humano através de outras pessoas, de modo continuo e dialógico, pois é da natureza humana o movimento e a vida na coletividade, tendo em vista que ninguém é humano sozinho e que agir de forma egoísta desumaniza e desestabiliza a energia vital que alimenta a existência.
Referência:
KAKOZI, Jean Bosco. Filosofia africana: a luta pela razão e uma cosmovisão para proteger todas as formas de vida. 2018. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/05/filosofia-africana-a-luta-pela-razao-e-uma-cosmovisao-para-proteger-todas-as-formas-de-vida/.
KAKOZI, K, Jean Bosco. Ubuntu como crítica descolonial aos Direitos Humanos: uma visão cruzada contra o racismo. Ensaios Filosóficos, v. 19, 2019. Disponível em: http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo19/02_KAKOZI_Ensaios_Filosoficos_Volume_XIX.pdf.
NEGREIROS, Regina Coeli Araújo Trindade. Ubuntu:considerações acerca de uma filosofia africana. Revista Problemata – v. 10 n. 2 (2019): Filosofia Africana: pertencimento, resistência e educação. Ed. especial. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/problemata/issue/view/2407.