Opinião

Ministro Gilmar Mendes (STF) reconhece constrangimento ilegal em cautelar que restringiu liberdade de ex-prefeita paraibana

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, revogou liminar que proibia Marcia Lucena, ex-prefeita do Conde, litoral sul da Paraíba, de sair do município sem autorização judicial. A decisão – uma vitória diante de sucessivas derrotas na esfera judicial – foi tomada com base no art. 580 do Código de Processo Penal e reconheceu “a existência de constrangimento ilegal, por considerar que as medidas cautelares estão sendo aplicadas em relação a fatos consideravelmente distantes no tempo da imposição cautelar”.

Márcia é acusada, no âmbito da Operação Calvário, de integrar uma Organização Criminosa (Orcrim) responsável pelo desvio R$ 134 milhões da Saúde e da Educação na Paraíba quando da gestão do ex-governador Ricardo Coutinho, com quem tinha e tem forte ligação política. Chegou a ser presa em 17 de dezembro de 2019, sendo solta cinco dias depois, tendo a liberdade restrita pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A acusação, levada a cabo por boa parte da imprensa paraibana que relativizou critérios jornalísticos e a condenou antecipadamente, pode ter tido papel decisivo no resultado das eleições. Em 2020, Márcia perdeu a disputa em que tentava a reeleição para a adversária Karla Pimentel, à época no PROS. Provável efeito da Calvário. Havia uma nuvem pesada de desconfiança sobre a gestora e, quando a credibilidade é posta em xeque, o impacto sobre os votos é certo.

Fato curioso 1. O PSB elegeu 54 prefeitos e 17 vice-prefeitos em 2016, dentre os quais estava Márcia Lucena. Ela, contudo, foi a única denunciada sob a alegação de colocar o mandato à disposição da Orcrim para desvio de dinheiro público destinado a pagamento de propina. A ligação com Ricardo Coutinho seria pano de fundo para a denúncia que conta com delações premiadas criticadas por juristas pela forma como foram obtidas, além de áudios apresentados como prova.

Fato curioso 2. Márcia Lucena geria um município marcado por conflitos de terra. Povo Tabajara de um lado; do outro, empresários, políticos e mais um punhado de “gente graúda” interessados na expansão imobiliária no território e/ou na manutenção de privilégios tributários. No meio deles, uma lei apresentada pelo Executivo, aprovada em 2018 pelo Legislativo, fruto de uma construção coletiva de Conselhos populares e especialistas. O texto ordenava a expansão urbana, recalculava valores de IPTU de modo a fazer justiça tributária – cobrando mais de quem ocupa áreas maiores-, e propunha o crescimento sustentável do município com proteção das áreas de preservação conforme o Estatuto da Cidade. Lei que foi alterada e afrouxada em novembro do ano passado, causando forte reação popular com direito à confusão na Câmara dos Vereadores.

Até onde a permanência de Márcia na Prefeitura seria uma ameaça aos interesses de grupos econômicos interessados em lotear o Conde e lucrar com o turismo predatório? Até onde isso teria relação com a Calvário? Seria a Calvário mero instrumento para tirá-la de cena? Em sendo verdade, o Direito estaria servindo a fins políticos. Seria lawfare. O Política por Elas tratou do tema há uma semana, mostrando a semelhança das práticas lavajatistas com a Calvário e os prejuízos da interferência de interesses não republicanos na defesa dos valores democráticos.

Não há aqui qualquer afirmação no sentido de demonizar os órgãos de investigação (jamais!), tampouco a defesa de Márcia Lucena. Este não é o papel da imprensa. Ao jornalismo cabe informar, mas também provocar reflexão à luz da observação honesta dos fatos. Aos órgãos do Judiciário, a observância e aplicação da lei dentro do devido processo legal e a garantia do contraditório. Foi exatamente este dever que pautou a decisão de Gilmar Mendes. A ex-gestora retoma um direito básico de qualquer cidadão, o de ir e vir, e até que seja julgada, o que ainda é uma incógnita dado que sete juízes já alegaram suspeição para julgar processos da Calvário, merece o benefício da dúvida.