A famigerada “auri sacra famis”

Essa semana li uma frase que dizia: “tempos estranhos em que ateus tentam explicar o que Jesus pregou”. Não sei quem é o autor, mas de fato é uma frase perfeita na atual conjuntura.O cristianismo sempre foi usado politicamente para justificar dominações, perseguições e guerras, as tais guerras “santas”,mesmo que a figura do Jesus Cristo, constante na bíblia, seja a própria imagem do amor e da paz, aquele que oferece a outra face e mesmo diante do sofrimento, da humilhação e da dor. Ele não usou armas para lutar contra as injustiças do Estado em sua época, não foi à espada sua arma, foi o amor, a compreensão e o respeito às diferenças. E era isso que causava medo nos governantes! Jesus, um revolucionário que veio quebrar paradigmas trilhou o caminho do amor e da fraternidade. Bebeu e sentou ao lado de todas as pessoas, sem distinção. Curou a todos que o procuraram, trouxe o recado da misericórdia e do perdão como fez com Madalena.

O que vemos hoje não é diferente do que ocorreu ao longo da idade média. Religiosos armados, em busca do ouro e do poder em detrimento do povo, dos seus fiéis. É a ética cristã totalmente desvirtuada e que não tem qualquer conexão com “amar ao próximo como a si mesmo”. A lógica do ganho inescrupuloso, do lucro pelo lucro, a “auri sacra fames é tão velha quanto a história da humanidade que conhecemos” (WEBER, 2004, p. 50), o que muda nessa circunstância é a lógica imposta pelo espírito do capitalismo.  O termo em latimutilizado por Weber significa maldita fome de ouro, que parece ser algo inerente a própria ao homem, mas não a humanidade em si.

Quando falo no termo humanidade me refiro àquilo que confere essa característica aos homens e mulheres, ao que Tim Ingold (1995) se refere como o que “torna-se o estado ou a condição humana do ser”(INGOLD, 1995), aquele como vive em sociedade e busca a harmonia,  e ela “se manifesta numa aparentemente inesgotável riqueza e diversidade de formas culturais,perfeitamente comparáveis à diversidade das formas orgânicas na natureza”. Mas diferentemente da harmonia que deveria permear o convívio social na humanidade, a auri sacra famis faz brotar o mais desumano e cruel no homem: a ganância que oprime, humilha e que cega. Não há espaço para empatia, cordialidade, compreensão e respeito.

Os arautos do evangelho, cegos pelo brilho do ouro e seus olhos, esqueceram do primeiro evangelizador. Assim, eles se tornam fundamentalistas, sectários e donos da verdade que impõem aos outros, de forma a excluir, ao invés de incluir, de vociferar palavras secas e sem piedade, são invés de acolher, de agirem com intolerância contra aqueles que não pensam da mesma forma que eles, ou mesmo que agem e se portam como verdadeiros cristãos, repartindo o pão e abraçando àqueles que em algum momento e por força, muitas vezes, da falta de políticas sociais, emprego e renda, se deixaram vencer pelos vícios ou pela fragilidade humana.

Jesus era um revolucionário e a revolução se faz pelo amor, pelo acolhimento e pela humanidade que habita em nós. A condição que nos insere no contexto de humanidade, não é a mesma que corre cegamente atrás do ouro que confere riqueza e poder econômico. Mas explicar isso para essa corrente a que chamam de teologia da prosperidade é difícil porque para entender o que é a prosperidade é preciso entender que Jesus repartiu o pão e o vinho, ele não guardou para si e os escondeu dos outros. Precisamos recorrer mais aos ensinamentos africanos do “ubuntu” e do “ukama” que dizem, respectivamente, que “somos através do outro” e “todos bebemos do mesmo leite”. Mas se nestes tempos sombrios cristãos não entendem o sentido de repartir o pão, então fica cada vez mais difícil fazê-los entender que a riqueza social e fraterna é que confere prosperidade e humanidade a nós. Tempos estranhos em que ateus tentam explicar o que Jesus pregou.

REFERÊNCIA:

INGOLD, Tim. 1995. Humanidade e Animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 10, n. 28. Disponível em http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/28/rbcs28_05.pdf. Acesso em 12 mai 2022.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Introdução, p. 41-69.