Arte subalterna, a Política e a Religião

A invisibilização das populações vulnerabilizadas pelas conjunturas políticas e religiosas, gerou mazelas econômicas e grandes abismos sociais. Essa invisibilização é em verdade um projeto colonialista de subalternização que inclui a alienação educacional, cultural e religiosa, que, por conseguinte, aliena politicamente e facilita o projeto de subalternização e dominação de grandes populações. Nesse cenário, geralmente ver-se a arte como uma atividade libertadora, descolonizadora, mas a arte, ao longo da história, serviu a muitos senhores, inclusive aos políticos e aos religiosos, portanto, nem sempre ela foi ou é revolucionária.

Muito se fala na contemporaneidade sobre a arte revolucionária, politizada, que denuncia os abusos políticos e sociais, o que muitos chamam de arte como anti-arte. E na verdade, em tempos sombrios a arte geralmente apresenta seu aspecto denuncista, mas não se pode esquecer que há arte subalterna, que há arte que replica e reforça o status quo e que é co-responsável pela dominação eurocentrista e pela patriarcalismo que subjuga e subalterniza mulheres, pessoas negras e invisibilizadas no contexto de social, cultural e político. A arte que reproduz padrões de exclusão e misoginia; a arte sectária que separa por castas e instaura verdadeiras tiranias padronizadas.

Ao longo da história, por exemplo, a comunicação e a propagação dos mitos e símbolos das mitologias muito se deu através da arte. Em muitos momentos ela também ajudou a romper as estruturas já solidificadas, muito embora, outras vezes, esteve a serviço delas. De tal forma, é importante lembrar que ascomposições sociais e artísticas foramfundamentais para a propagação, a reconfiguração e o estabelecimento mitológico em diversas civilizações, como Dante Alighieri na literatura, as artes sacras na pintura, as construções de igrejas e catedrais na arquitetura do período patrísticoe escolástico, por exemplo, que propagaram o Cristianismo (CAMPBELL, 2018).A herança das formas simbólicas chegaram aos poetas e artistas da Europa que polinizaram a cultura e suas mitologias, inclusive através do intercâmbio de mercadorias entre ocidente e oriente.

Como já vimos em outras colunas, há uma relação de poder e manutenção de status quo que se dá entre os mitos, as religiosidades e a política de se estabelece cultural e socialmente, essa relação ela se estende às manifestações artísticas e assim, a política também se apropria da arte para reforçar a dominação. De tal forma, essa arte é extremamente branca, eurocentrista e subalternizada pela política e pela religião, de modo que a mitologia negra, por exemplo, passa a ser vista como demoníaca e grosseira ou mesmo selvagem como diriam os antropólogos e demais pesquisadores do passado que reafirmaram a hegemonia branca e exoticizaram a cultura e negra.

O período medieval é talvez o mais óbvio para ilustrar o tema em questão. A arte nas suntuosas catedrais e igrejas da europa era a arquitetura à serviço do clero, o clero que por sua vez elegia e/ou legitimava os reis e rainha daquele período. As obras literárias que eram produzidas para as cortes e o clero replicavam o modelo dominante. As artes plásticas e as músicas eruditas também eram produzidas para o consumo destas castas.  Como se percebe, a arte, muitas vezes, foi subalternizada. As vozes dissonantes do sistema eram silenciadas e/ou ignoradas. No sistema dominante sempre prevaleceu o interessava e interessa ao sistema, nesse caso, uma política excludente e uma igreja hegemonicamente dominante que perpetua o sistema.

A arte emancipada é própria da contemporaneidade e filha das revoltas. Artistas insurgentes passaram a ter voz com a expansão dos grupos através da globalização e o empoderamento étnicofoi e édeterminante paravisibilizar vozes e culturas silenciadas por séculos de dominaçãocolonial. E mesmo quando a cultura resiste através da arte, o sistema dominante reage e muitas vezes tenta se apropriar violentamente e se utilizar  dela para dar prosseguimento aos seus projetos de manutenção do status quo. A senzala só serve aos senhores de terno e gravata se for para servir em silêncio.

Os apagamentos e os epistemicídios se dão de muitas formas, mas a violência cultural em relação à população afro-diaspórica é algo sem precedentes na história da humanidade. Mas não sem resistência! Os maracatus, por exemplo, resistiram e se reinventaram para eternizar-se na história ocidentalcomo um marco da cultura negra. Ele surge no processo da afro-diaspórico, no entanto, surge, segundo pesquisadores como Pereira da Costa, Mario de Andrade e outros, em circunstâncias de dominação e não de resistência, já que é oriundo das coroações dos Reis do Congo. O Rei era eleito entre os escravizados, “um rei que se constituía em uma pretensa corte com a monarquia portuguesa, e isso com a aprovação das autoridades seculares e eclesisásticas” (RODRIGUES, 2008, p. 41).

A coroação do Rei do Congo era, na verdade, uma forma de subordinação, administração e controle dos escravizados pela igrejae pela monarquia. O objetivo da eleição do Rei do Congo era“a manutenção da ordem e a regulação dos atos de sua nação, em uma ilusória simulação de liberdade política, sancionada pelas autoridades brancas” (NEGREIROS, 2018). Mas os reis e seus súditos ali se unificavam em cultura e devoção. Naqueles encontros eles tinham a oportunidade de reunir forças e “recarregar as baterias” para o enfrentamento cotidiano. E quando os “ajuntamentos de negros” -como chamavam as “autoridades” brancas – se tornavam ameaças, eram então perseguidos (LIMA, 2008)e, de tal forma, passaram a necessitar de autorização do delegado de polícia para sair às ruas. O que a elite dominante não compreendeu foi que “os reis negros no Brasil escravista eram polos aglutinadores de comunidades que construíam novas identidades a partir de seus legados africanos, acomodados à estrutura da sociedade escravista brasileira”(SOUZA, 2005 p. 83). E foi assim que a cultura negra começou a se emancipar e passou, nos dias atuais, a ser uma voz insubordinada da resistência cultural contra qualquer forma de opressão e dominação. Os maracatus estão ligados as religiões afro-brasileiras e a representam na cultura e na religião através das indumentárias, das liturgias, das músicas entoadas, dos instrumentos etc.

Como se pode perceber, em um movimento de resistência o povo negro, no século XIX, se apropriou de suas raízes e transformou o que era dominação em cultura de resistência e memória. Mas é importante entender que a história de um povo, sua arte e sua cultura podem ser usadas contra ela mesma pelas oligarquias dominantes. No caso dos maracatus, a política do Império e da Igreja através do colonialismo eurocêntrico e opressor bem que tentou a alienação, mas a arte, a cultura não devem jamais servir de instrumento de subordinação, por mais que sejam elementos presentes em determinados períodos como ocorreu na Europa medieval, mas a consciência humana é inalienável e livre.

 

REFERÊNCIA:

CAMPBELL, Joseph.As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa, Vol. 4. 2 ª ed. São Paulo: Palas Athena, 2018.

LIMA, Ivaldo Marciano de França. Maracatus e Maracatuzeiros: Desconstruindo certezas, batendo alfaias e fazendo histórias. Recife, 1930 – 1945. Recife: Bagaço, 2008

SOUZA, Marina de Mello e. Reis do Congo no Brasil, séculos XVIII e XIX. Revista de História [enlinea] 2005. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022040004> ISSN 0034-8309. Acesso em 27 Ago 2017

NINA RODRIGUES, Raimundo. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Editora Madras, 2008.

NEGREIROS, Regina Coeli Araújo Trindade.  Maracatu à paraibana: uma análise das reinvenções e conexões político-sociais-religiosas a partir do Pé de Elefante. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/13333?locale=pt_BR. Acesso em: 15 JUL 2021.