Circulação de armas e violência

No dia 28 de junho de 2022 foi publicado um documento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) no qual constata que as mortes violentas intencionais (homicídios dolosos, latrocínios e as mortes decorrentes de intervenções policiais e as lesões corporais seguidas de morte) relativas ao ano de 2021 diminuiu em relação a 2020. Segundo o Anuário para cada 100 mil habitantes, houve 22,3 mortes violentas intencionais, uma queda de 6,5% em relação ao ano anterior. Houve também uma diminuição das notificações: de 50.448  em 2020 para 47.503 em 2021. E um dado relevante é que embora tenha havido uma diminuição de mortes violentas intencionais e de notificações,  76% em relação  às mortes intencionais foram por armas de fogo.

O governo e seus defensores procuraram relacionar esses indicadores ao aumento do acesso da população a armas, ou seja, como fator explicativo para a redução das mortes violentas (intencionais). Com o argumento de que a população está mais segura quando armada, o presidente da República tem feito, AL longo do tempo, antes e durante o seu mandato, uma apologia do uso de armas e no governo, defendido e adotado medidas para aumentar o de número de pessoas armadas no país. São mais de 30 atos normativos, portarias e decretos presidenciais, visando ampliar o acesso a armas e de munições que podem ser adquiridas por cidadãos comuns e ampliando ainda mais a quantidade para os que já têm registro de CAC (colecionador, atirador e caçador).

E é evidente, pelos dados disponíveis, que as medidas adotadas e sua defesa pública, têm aumentado o número de armas em circulação: segundo os órgãos responsáveis pelo registro de armas, como a Polícia Federal e o Exército, houve um crescimento de concessão de registros de armas desde o início do governo, evidenciado que os brasileiros estão se armando cada vez mais. Dados relativos a 2019 e 2020, indicam 178.721 concessões, o que supera todos os registros liberados nos dez anos anteriores: entre 2009 e 2018, foram 150.974.

Os dados relativos a 2021 têm sido utilizados como justificativas sobre a eficácia dessas medidas, mas esses dados significam mesmo que em função do aumento de pessoas armadas a violência diminuiu? Ou é mais uma falácia? Uma análise dos dados do Anuário evidencia que armar a população é um equívoco, segundo os próprios números do Anuário revelam. Vejamos.

Em relação ao crescimento da circulação de armas no país, é fato que tem sido constatado desde o início do governo de Bolsonaro, sob o seu estímulo (não por acaso arma foi um dos símbolos de sua campanha) que o registro de armas de fogo cresceu (e não cresceram mais porque houve reações, inclusive jurídicas visando impor limites ao armamento indiscriminado). Só em relação a caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs) houve um crescimento de 474%. Segundo dados do Anuário, com base nos cadastros do Exército (Sigma) e da Polícia Federal (Sinarm), havia em março de 2022, 64% mais armas de fogo legal em poder dos civis que em 2019, ano do início do governo. Além de milhares de armas de fogo em poder dos civis, há ainda as da segurança privada (um contingente com mais de 300 mil pessoas entre homens – a maioria – e mulheres) e ainda das três Forças Armadas, policias civis e militares. Além de armas irregulares (segundo o Anuário do Fórum de Segurança Pública de 2020, a cada ano, mais de 100 mil armas são aprendidas pelas policias no Brasil e enquanto algumas saem de circulação, milhares entram no mercado, por vias legais ou ilegais).

Quando se analisa os dados regionais disponibilizados pelo Anuário, percebe-se que não há associação entre o aumento de armas entre civis e a queda da violência.Os dados relativos aos estados da região norte, por exemplo, nos estados do Amazonas, Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Pará, os registros de armas cresceram  assim como o aumento de mortes violentas (17%) da mesma forma no Centro Oeste quando um crescimento de armas em poder dos civis e de mortes violentas e onde houve menor crescimento de circulação de armas as mortes violentas caíram.

No estado do Amazonas houve um grande crescimento de novos registros de armas entre os civis entre 2014 e 2021. Segundo o Anuário, um crescimento de 1.566%. No entanto, a violência não diminuiu. Ao contrário, entre 2020 e 2021, houve um crescimento de 53,5% nos homicídios dolosos.

Esses dados mostram que é uma falácia associar crescimento de armas em circulação e queda na violência.

Segundo o relatório do Anuário, a queda nos índices de violência letal está vinculada a outros fatores, como mudanças demográficas, envelhecimento da população, diminuição relativa do número de adolescentes e jovens (que são as principais vítimas dos crimes), associado a políticas locais, como investimentos em segurança pública,  equipamentos, inteligência etc., e, não menos importante,  a redução de conflitos entre facções criminosas.

E também importante ressaltar, mesmo considerando todas as tentativas de acabar com o Estatuto do Desarmamento  ele tem sido importante para explicar a queda. Trata-se de uma lei de 2003 que criou regras mais restritivas para acesso a armas e penas mais duras para porte e posse ilegal e que segundo pesquisas que analisaram seu impacto, como os relatórios publicados pelo Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a taxa média anual de crescimento das mortes por armas de fogo passou de 6% entre 1980 e 2003 para 0,9% nos quinze anos após o Estatuto do Desarmamento (2003 a 2018) e houve uma redução da taxa de crescimento nas mortes por armas de fogo.

Outros dados disponíveis  permitem afirmar que há uma clara relação entre homicídios e armas de fogo. Em 2019, um relatório do Ministério da Saúde, com base em dados dos estados brasileiros, mostrou que armas de fogo foram os instrumentos utilizados para sete de cada dez assassinatos, ou seja, 70% do total.

Como diversos estudos têm mostrado, tanto em relação ao Brasil como outros países,  quanto mais armas e munições em circulação, maiores são as chances de crimes. Como afirma Antonio Rangel Bandeira na apresentação do livro de sua autoria, Armas, para quê? O uso de armas de fogo por civis no Brasil e no mundo e o que isso tem a ver com a segurança pública e privada (Editora Leya, 2019), “O governo e parte dos seus apoiadores propõe que as pessoas se armem e se defendam sozinhas, como sucedia em tempos antigos, quando a guarda só protegia o rei, a nobreza e o território do reino, ficando os súditos entregues à própria sorte, ou azar. A falência do nosso Estado leva a que se busque essa regressão. É uma proposta motivada pelo medo natural, pelo ódio contra a crueldade dos bandidos, pela descrença num poder público incompetente e por determinada visão das causas da atual violência urbana”.

Fundamentalmente, o que reduz a violência são políticas públicas eficazes, que vão além de palavras (e falácias), à melhoria das condições de vida da população (é só relacionar os índices de violência, inclusive e especialmente com armas, em países com altos índices de desenvolvimento humano, como Dinamarca, Suécia, Noruega, Áustria, Japão, Bélgica, Reino Unido etc.)

E a realidade brasileira só contribui para ampliar as desigualdades e a violência, com alto índice de inflação, desemprego, fome que hoje atinge mais de 33 milhões de pessoas, segundo dados divulgados no dia 8 de junho de 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisas em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PESSAN).

Facilitar compra e porte de armas e munições, como tem feito o governo desde o início, não é política de segurança, mas de insegurança, uma falácia para enganar, ao repetir sistematicamente que armar à população a torna mais segura, quando na realidade ocorre o contrário: aumenta a violência, em vez de diminuir e portanto traz mais insegurança do que segurança.