Em nome da governabilidade: os desafios do governo Lula

Governabilidade tem sido um termo recorrente no debate político atual. É sempre utilizado quando se discute (e se justifica) alianças e coligações eleitorais. Na ciência política uma pesquisa sobre a produção teórica e empírica em relação à governabilidade, revela a existência de uma vasta produção, com grande diversidade de análises, cuja síntese é de que se trata da capacidade de o governo tornar efetivas as suas decisões políticas, ou seja, a capacidade do governo para implementar os projetos de seus interesses, com apoio parlamentar.

E é justamente em nome da governabilidade que se têm justificado alianças eleitorais mais díspares, como as que deram sustentação política a todos os governos pós-ditadura militar (e os que não tiveram esse apoio, como Fernando Collor e Dilma Rousseff, que sofreram o impeachment em 1992 e 2016, respectivamente).

O cientista político Sérgio Abranches, em artigo pioneiro (1988) qualificou esse arranjo institucional como presidencialismo de coalizão. Ao analisar o presidencialismo no Brasil, usou o termo para caracterizar os governos pós-ditadura militar. Para ele, esse tipo de presidencialismo caracteriza o sistema político. Assim, há no Brasil um presidencialismo que necessita, em nome da governabilidade, de uma coalizão multipartidária uma vez que todos os presidentes eleitos desde 1989 o foram por meio de alianças, na impossibilidade de seus respectivos partidos concorrerem às eleições (e governarem) sozinhos, em especial, considerando a existência de muitos partidos e a formação de um Congresso Nacional (que se estende também aos parlamentos municipais e estaduais) muito fragmentados. Trata-se, portanto de um arranjo institucional possível em uma democracia com um sistema de governo presidencialista. Nele, o presidente da República tem um papel central no equilíbrio, gestão e estabilização da coalizão e precisa não apenas de apoio parlamentar, construindo uma base de apoio consistente, como também deve ter apoio popular, o que requer eficácia de suas políticas, sobretudo econômicas, e assim poder usar sua  popularidade para exercer pressão sobre sua coalizão e, como salienta Abranches, é fundamental ter “uma agenda permanentemente cheia, para mobilizar atenção da maioria parlamentar e evitar sua dispersão; ter uma atitude proativa na coordenação política dessa maioria para dar-lhe direção e comando. Para Abranches o conflito entre o Executivo e o Legislativo tem sido elemento historicamente crítico para a estabilidade democrática no Brasil, em grande medida por causa dos efeitos da fragmentação na composição das forças políticas representadas no Congresso e da agenda inflacionada de problemas e demandas imposta ao Executivo.

Para Marcos Nobre, no livro “Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma” (São Paulo, Companhia das Letras, 2013) essas alianças, se por um lado respeitava os procedimentos democráticos, por outro, era pouco funcional. Para ele, se trata não de um presidencialismo de coalizão, mas do que chamou Pemedebismo, que não se restringe a um partido específico, mas de um fenômeno que domina todo espectro político. Sua tese é a de que o Brasil, desde a sua redemocratização nos anos 1980, convive com uma “cultura de baixo teor democrático” (p. 9), que impossibilita transformações sociais mais profundas, estruturais. O uso do termo se remete a uma cultura política de pemedebismo, em função do PMDB (agora MDB) ter sido o espaço político institucional no qual se concentraram as diferentes forças de resistência à ditadura e, ao mesmo tempo, expressão maior da “ideologia oficial de uma transição morna para a democracia” (p. 11).

E apesar do país viver numa normalidade democrática, pelo menos até o início do governo Bolsonaro, com seus arroubos autoritários, dando início a um processo de desmonte do estado brasileiro, com a conivência majoritária do Congresso, de maioria conservadora e de direita, não havia no Brasil propriamente uma democracia. Com Lula e Dilma, a redemocratização se encerrou, mas não se completou em virtude da permanência do que chamou de” dinâmica bloqueadora do pemedebismo, que fecha qualquer canal de protesto contra o sistema político”. O que caracteriza o pemedebismo é uma cultura política em que quase todos os partidos, sem identidades programáticas e ideológicas claras, aderem a coalizões de apoio ao governo (qualquer governo) e como ele diz “se especializam em vender apoio parlamentar”. Nesse sentido, além da oposição no Congresso (e fora dele), o governo com amplas coalizões enfrenta também oposição em sua base de apoio, votando de acordo com suas conveniências, trocas por cargos, verbas etc.

Na campanha eleitoral de 2018 Bolsonaro teve como estratégia eleitoral um discurso contra os políticos, o Congresso, se apresentando como uma espécie de “nova política”, “antissistema”. Avesso (no discurso) à política tradicional, ele atacava os partidos do chamado Centrão e dizia que não faria indicações políticas para os ministérios. Era uma tática eleitoral que teve êxito e estava inserido em um projeto autoritário, que no limite significaria o fim do peedebismo. Quem conhecia a trajetória (medíocre) de Bolsonaro no Congresso, sabia que se tratava apenas de discursos, de estratégia usada no processo eleitoral para “estar em sintonia com parcelas significativas da população que rejeitava o Congresso, os partidos e os políticos”, mas como se constatou depois, não durou muito. No primeiro ano do seu governo, manteve uma postura agressiva em relação ao Congresso, mas a partir de 2020 ele mudou, acuado por dezenas de pedidos de impeachment e pelo avanço das investigações sobre o esquema de desvio de recursos públicos que teria sido operado no antigo gabinete de então deputado estadual (e hoje senador) Flávio Bolsonaro e a situação ficou ainda mais complicada em junho de 2020, quando o ex-assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, foi preso, acusado de ser o operador do esquema.  Foi nesse contexto que Bolsonaro passou de crítico a aliado do Centrão, um grupo de partidos que apóiam qualquer governo, desde que tenham acesso a verbas e cargos federais e ele precisava de apoio no Congresso para evitar um processo de impeachment e o Orçamento Secreto se tornou um elemento fundamental nesse processo. E com sua aprovação, em 2021, ampliou seu poder tornando o governo refém, e assim foi quem de fato definiu as pautas relevantes do Congresso Nacional (e se beneficiou com elas).

O grande risco da continuidade desse processo no terceiro mandato de Lula é ele fazer o que alguns chamam de “pacto com o diabo” para garantir as condições de governabilidade com o Centrão, à direita e tudo que isso significa de retrocessos.  Não será uma tarefa fácil para Lula superar isso, com toda sua experiência, capacidade e habilidade política na construção de consensos. Como abrir mão da cultura de governar com grandes coalizões no Congresso e assim não continuar a fazer o que sempre foi feito, sem que haja reformas amplas no sistema político, eleitoral e partidário? E como se faz isso, sem uma base consistente no Congresso Nacional e sabendo-se de antemão que reformas com essa amplitude prejudicará interesses de muitos partidos, inclusive da base de apoio do governo?

É fato que sendo o presidencialismo um sistema de governo no qual mesmo o presidente tendo muitos poderes, não pode tudo e necessita construir alianças, e que tem havido é o “loteamento” do estado para os aliados políticos porque, sem isso, não há apoio político e sem ele, é difícil garantir a governabilidade.

Os dilemas a serem enfrentados por Lula pode ser exemplificado em um caso recente, envolvendo o Ministro das Comunicações Juscelino Filho. No início de seu governo, Lula afirmou que não iria tolerar atos de corrupção ou mesmo suspeitas de crimes por parte de seus ministros recém-nomeados. Corretíssimo. No entanto, em função de denúncias, em especial de matérias publicadas no jornal o Estado de S. Paulo o ministro das Comunicações, foi acusado de usar recursos de emendas parlamentares para a construção de estradas que dão acesso a fazendas de sua família na cidade de Vitorino Freire (MA), e mais: que emendas de mais de R$ 5 milhões foram repassadas à Prefeitura da cidade, que tem sua irmã como prefeita e ainda sobre uma viagem feita em aeronave oficial da FAB (Força Aérea Brasileira), de Brasília para São Paulo, no fim de janeiro, que incluiu reuniões de trabalho, mas também participação dele em leilões de cavalos (ele é criador de cavalos de raça no Maranhão) tendo recebido diárias durante todos os dias em que esteve em São Paulo (em sua defesa o ministro disse depois ter devolvido os recursos), Lula fez uma reunião com ele, alegando o princípio da presunção de inocência e no final, o manteve no cargo. Foram os argumentos e a defesa apresentados ou, na realidade, uma vitória da governabilidade diante da promessa de Lula no início do mandato?

Em 2002, o PT fez alianças, para além do campo da esquerda, e apresentou o documento intitulado Carta ao Povo Brasileiro que sinalizou a disposição em fazer uma inflexão no seu programa, mantendo alguns princípios da política econômica do governo anterior e construindo uma ampla aliança para governar. Um dos resultados foi o loteamento de cargos e ministérios que resultou no chamado Mensalão, que recebeu ampla cobertura midiática, antipetista, mas que não impediu a reeleição de Lula em 2006. Uma coalizão ampla, hoje, deve levar em conta o que foi feito no passado e não repetir os mesmos procedimentos porque corre o risco de ter os mesmos desdobramentos. Na eleição de outubro de 2022 Lula ganhou por uma margem muito pequena, mas sua vitória foi fundamental para, como disse Jean Marc Der Weid “para afastar o perigo maior da permanência de Bolsonaro”. E, como ele afirma, teve seu o preço: “Lula precisou do apoio de setores que, no passado, estiveram firmes à frente de todas as tentativas de afastar um governo de esquerda. Se dependesse apenas das forças progressistas Lula teria perdido as eleições. A direita cresceu de forma significativa, seja na sua expressão mais fisiológica (voto no centrão), seja na sua expressão mais ideológica (voto nos candidatos bolsonaristas) (“ Os perigos que ameaçam o governo do presidente Lula”) e nesse sentido é fundamental enfrentar a direita, no parlamento e especialmente com mobilização popular, nas ruas, porque sem isso, com o desmonte do estado feito no governo Bolsonaro e sua difícil reconstrução, corre-se o risco de se ter , mais uma vez, o protagonismo da direita.