O (necessário) combate às desigualdades sociais no Brasil
O Índice de Gini foi criado pelo matemático italiano Conrado Gini e tem sido utilizado como parâmetro internacional para mensurar o nível de desigualdade de distribuição de renda entre os países. Os índices variam de zero a um. Quanto mais próximo de 1 (um), mais desigual é a distribuição de renda (em alguns casos são apresentados índices de zero a cem), sendo que zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda e o valor um (ou cem) está no extremo oposto, evidenciando o máximo de concentração de renda. Ele é utilizado para medir o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que considera como critérios a saúde, a educação e o padrão de vida, classificando os países como de muito alto desenvolvimento humano; alto desenvolvimento humano; médio desenvolvimento humano; e baixo desenvolvimento humano. Quanto mais próximo de 1, melhor e mais alto é o IDH, e quanto mais próximo de 0, pior e mais baixo é esse índice.
O relatório do IDH de 2022, relativo aos anos de 2021-2022, divulgado no dia 8 de setembro de 2022 (The Human Development Report 2021/2022) com dados de 191 países, em cinco continentes, constata que pela vez em 32 anos (foi iniciado em 1990), o índice caiu globalmente por dois anos consecutivos. Segundo um informe da ONU a respeito desses dados: “Mais de 90% dos países registraram declínio na pontuação do IDH em 2020 ou 2021, e mais de 40% caíram nos últimos dois anos, sinalizando que a crise ainda está se aprofundando em muito deles”.
O Brasil é um dos países que nesses dois anos registrou uma queda. Mas não são apenas esses estudos e dados que evidenciam as desigualdades no país. Ao longo do tempo, tem sido objeto de muitos estudos. Entre outros podemos citar o conjunto de artigos do livro Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos, organizado por Martha Arretche (Editora UNESP/Centro de Estudos da Metrópole, 2015) que como ela diz “pretende ser uma contribuição ao conhecimento sobre a trajetória das desigualdades no Brasil” (p.3) analisa, com bases teóricas e empíricas consistentes, sua trajetória no país, sua persistência e abrangência, e nesse sentido, embora mudanças tenham sido constatadas nos 50 anos de análise do livro (1960-2010), ”que compreendeu contextos econômicos e políticos muito distintos” o fato é as desigualdades permaneceram e, por suas dimensões e complexidade, não podem ser resolvidas em curto prazo, por maiores que sejam as intenções, objetivos e projetos de governos efetivamente preocupados e comprometidos com a diminuição das desigualdades, como foram os governos de Lula (2003-2010) e como certamente será o seu novo governo a partir de 2023.
Em 2014, segundo relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) o país saiu do Mapa Mundial da Fome, que decorreu da priorização da agenda de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) com destaque ao lançamento da Estratégia Fome Zero, dados relativos aos anos de 2017-2018, divulgados no dia 17 de setembro de 2020 divulgados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (Análise da Segurança Alimentar no Brasil) constatou-se que houve um retrocesso, com o país entrando novamente no Mapa da Fome, ou seja, desde 2020 o país retornou ao Mapa da Fome. Pelo menos desde o golpe de 2016 houve um retrocesso no combate à fome e extrema pobreza no Brasil, motivada pela expansão das políticas neoliberais e a consequente desestruturação e desmantelamento das políticas de proteção social, assim como da segurança alimentar e nutricional.
Em junho de 2022, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) divulgou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar. O documento afirma que são 33,1 milhões de pessoas na situação mais grave da insegurança alimentar no Brasil.
Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) “Esse retrocesso histórico é causado por um desmonte das políticas de combate à insegurança alimentar no Brasil. De 2004 a 2013, essas políticas reduziram a fome de 9,5% para 4,2% dos lares brasileiros. No final de 2020, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil mostrou que 19,1 milhões de brasileiros, o equivalente a 9% da população, estavam em situação de fome. Hoje, 15,5% dos lares estão em situação de insegurança alimentar grave e 125,2 milhões de pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar” (https://idec.org.br/noticia/em-2022-33-milhoes-de-brasileiros-passam-fome-no-brasil).
Os dados em relação à pobreza e a miséria no país evidenciam também a importância dos compromissos assumidos e defendidos na campanha eleitoral de Lula e o seu novo governo, que possam alterar substancialmente esse quadro e nesse sentido é fundamental que os formuladores de políticas públicas, com um diagnóstico preciso da situação do país, possam formular ações e medidas concretas para a redução das desigualdades.
São muitos aspectos possíveis de serem abordados quando se trata do tema da desigualdade, que é amplo, e muito complexo e destaco apenas a que se expressa nas intensas desigualdades raciais, que historicamente condicionam a sua reprodução permanente e que se torna visível na inserção no mercado de trabalho (Os estudos sobre educação e trabalho têm constatado que a desigualdade educacional tem entre outros efeitos o de limitar a inserção dos negros no mercado de trabalho, e quando isso ocorre são em empregos menos qualificados e pior remunerados).
No artigo Desigualdades raciais no Brasil: um desafio persistente do livro Trajetórias das Desigualdades (2015) Márcia Lima e Ian Prates afirma-se que “os dados têm sido inequívocos e mostram como o processo cumulativo de desvantagens socioeconômicas não só colocou a população negra na base da pirâmide social, como também revelou forte capacidade de reprodução, fazendo que diversas gerações desse grupo tenham maiores dificuldades de mobilidade social” (p.188).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE tem feito pesquisas e publicado seus resultados que ajuda no diagnóstico, como a constatação de que as pessoas pretas ou pardas são as que mais sofrem com a má distribuição de renda no país. Em 2018, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio Contínua embora representem a maior parte da população (55,8%) e da força de trabalho (54,9%), apenas 29,9% ocupavam os cargos de gerência, e que se expressa também na renda: o rendimento médio mensal da pessoa ocupada (considerado como Pessoa ocupada “aquela que possui algum ofício em um determinado período de referência, sendo esse ofício remunerado, não remunerado, por conta própria ou como um empregador”) preta ou parda é quase 50% menos do que das pessoas brancas. E esta desigualdade é mantida entre a parcela dessa população em ocupações informais e desempregada, cuja maioria é composta pela população preta ou parda, (independentemente do nível de instrução, embora entre os que concluíram o ensino superior, essa diferença seja menor). Os brancos não apenas ganham mais, como vivem mais, sofrem menos violência e ocupam mais empregos.
No início de novembro de 2022 foi publicado um dossiê do IBGE Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, mostram que o país se tornou mais desigual em 2021. Os são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua, Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF, Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar – Pense, Pesquisa Nacional de Saúde – PNS e Pesquisa de Informações Básicas Municipais além de registros administrativos de instituições, como Tribunal Superior Eleitoral – TSE, Ministério da Saúde e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP.
Entre os indicadores estão à avaliação das condições de vida, mercado de trabalho, distribuição de rendimento, condições de moradia e patrimônio, educação, vitimização por violência, além de representação política (presença nos parlamentos municipais, estaduais e Congresso Nacional) que evidenciam as históricas e permanentes desvantagens das pessoas pretas e pardas no plano social, econômico e político. E mais: quando se considera as regiões, é no Nordeste onde está a maior população negra (e feminina), mais discriminada e vivendo em piores condições. (O Maranhão é um dos estados mais pobres do país, com menores índices de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e os dados indicam que a pobreza afeta quase a metade da população (48,5%), dos quais 3,5 milhões vivem na pobreza extrema).
Como consta no documento os temas tratados no estudo são objetos do Programa de Atividades para a Implementação da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, por meio da Resolução 68/237, de 23.12.2013 “que almeja promover o respeito, a proteção e o cumprimento de todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais desse contingente populacional”.
O objetivo pode ser resumido em três princípios básicos: reconhecimento, justiça e desenvolvimento. Trata-se da “necessidade de reforçar a cooperação nacional, regional e internacional em relação ao pleno aproveitamento dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos de pessoas de afrodescendentes, bem como sua participação plena e igualitária em todos os aspectos da sociedade”.
Entre os principais objetivos da Década Internacional de Afrodescentes estão o de promover o respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas afrodescendentes, como reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
O problema principal é como assegurar a plena e efetiva Implementação do Programa de Atividades quando estabelece que “em nível nacional, os Estados devem tomar medidas concretas e práticas por meio da adoção e efetiva implementação, nacional e internacional, de quadros jurídicos, políticas e programas de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata enfrentados por afrodescendentes, tendo em conta a situação particular das mulheres, meninas e jovens do sexo masculino” e nos níveis regional e internacional “sensibilizar e disseminar a Declaração e Programa de Ação de Durban e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ajudar os Estados na implementação plena e efetiva de seus compromissos no âmbito da Declaração e Programa de Ação de Durban, recolher dados estatísticos, incorporar os direitos humanos nos programas de desenvolvimento e honrar e preservar a memória histórica de pessoas afrodescendentes”. (O texto completo do Programa de Atividades está em http://www.decada-afro-onu.org/en/events/africandescentdecade/pdf/A.RES.69.16_IDPAD.pdf
Quantos países estão efetivamente comprometidos em tornar realidade esse conjunto de medidas e o que foi feito entre 2015 e 2022? No Brasil, como os dados evidenciam, houve um retrocesso, com o crescimento das desigualdades e como consequência, o crescimento da pobreza e da miséria.
Os desafios do novo governo Lula são imensos. Uma matéria publicada no dia 25 de junho de 2022 no jornal Folha de S. Paulo por Alexa Salomão, afirma que “Considerando a renda das famílias, 47,3 milhões de brasileiros terminaram o ano passado na pobreza. O número equivale a 22,3% do total da população brasileira, o maior percentual em dez anos, segundo levantamento realizado pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS). Os dados do levantamento mostram que a piora foi generalizada: quase 11 milhões caíram na pobreza em todo o país em 2021, dos quais são 6,3 milhões na extrema pobreza”.
E, importante destacar é que embora a pobreza tenha avançado em todo o país e nos mais diversos segmentos, como ela afirma, a parcela da população que mais sofreu é a negra —73% do total — e se concentrava em regiões e estados mais pobres. No Nordeste, são 5,5 milhões a mais do que em 2021 de um total de 22,8 milhões, em torno de 40% da população. No Sul, também aumentou, com mais pobres passando a representar 10% do total da população, com três milhões de pessoas na pobreza.
Como é constatado pelos dados, não houve reversão na trajetória de queda da pobreza no Brasil, ao contrário, aumentou e o Brasil voltou a integrar o Mapa da Fome. Nesse sentido é mais do que urgente e necessário ampliar a rede de assistência social que foram criadas no primeiro governo Lula e ajudaram a diminuir as desigualdades, que deve ser associada à retomada da geração de empregos, com o crescimento da economia, a criação de um sistema de seguridade para o trabalhador informal, conservação ambiental (se contrapondo ao isolamento e negacionismo ambiental do atual governo), retorno de investimentos em educação, saúde, cultura etc., entre outras medidas relevantes que possa se não acabar, pelo menos contribuir para diminuir a histórica e persistente desigualdade social no país.
Foto: Bruna Justa/Estadão