Pátria armada, Brasil – Mais armas, para quê?

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado adiou, mais uma vez, no dia 9 de março de 2022, por 15 votos a 11, o Projeto de Lei  n. 3.723/19, conhecido como PL das Armas, que altera o Estatuto do Desarmamento e o Código Penal, e regulamenta o registro, posse e porte de arma de fogo para caçadores, atiradores e colecionadores(CACs). A decisão acata pedido de vista da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA).

O PL, de iniciativa do governo federal, foi aprovado no início de novembro de 2019 na Câmara dos Deputados (283 favoráveis e 140 contrários) e em função das polêmicas foi feito um acordo entre as lideranças dos partidos e foi votado apenas o porte de armas para atiradores, caçadores e colecionadores de armas (CACs), sendo retiradas do texto mudanças quanto ao porte de armas para diversas categorias como guardas municipais e agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), fiscais do meio ambiente, auditores fiscais agropecuários, agentes de trânsito, advogados públicos da União, dos estados e municípios, peritos criminais e procuradores estaduais e do Distrito Federal, cuja inclusão está no parecer do relator do PL na CCJ do Senado. Caso seja aprovado na comissão, seguirá para ser votado no plenário do Senado. Se houver modificações em relação ao que foi aprovado pela Câmara dos Deputados, retornará a esta casa para ser votado novamente.

O PL flexibiliza o acesso de armas a CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), amplia o número de armas que uma pessoa pode comprar, acaba com as marcações nos projéteis disparados por pistolas, fuzis e outros armamentos (que eram usados para rastrear armas). O texto aprovado na Câmara dos Deputados não foi integralmente o que os CACs  defendia, como por exemplo, o total de armas a ser comprada (ficou decidido que os CACs poderão ter o porte e a posse de até dez armas de fogo, de curto ou longo calibre, desde que justifiquem ao órgão a necessidade para a prática esportiva). Foi aprovado também que para ter porte de armas é preciso ser CAC há pelo menos cinco anos (no decreto do governo não se estabelecia prazo).

Um aspecto relevante em relação à facilitação de acesso às armas foi discutido pelo jornal O Globo que no dia 16 de fevereiro de 2022 publicou o editorial Facilitar o acesso às armas é dar munição ao crime organizado no qual cita uma pesquisa do Instituto Sou da Paz  que mostra haver uma ligação estreita entre a compra legal de armas e o arsenal apreendido em poder de criminosos. O estudo citado é Desvio fatal: vazamento de armas do mercado legal para o ilegal no estado de São Paulo, que analisou quase 24 mil ocorrências em São Paulo entre 2011 e 2020 e constatou “uma coincidência inequívoca entre os modelos furtados, roubados ou extraviados e os que estavam nas mãos dos bandidos. A maior parte do armamento recuperado (53%) estava com a numeração raspada, impossibilitando o rastreamento”.

O que os dados da pesquisa revelam é que “a fronteira entre armas legais e ilegais é cada vez mais tênue (…) e o cidadão comum, com a intenção de se proteger num país que não lhe dá segurança, acaba fornecendo munição aos bandidos, agravando o problema da violência. Segurança pública é dever do Estado. Terceirizá-la, transferindo ao cidadão tarefa que não é dele, é um crime”.

Mas é isso que o presidente da República desde o início do governo tem defendido e tomado uma série de medidas, como mais de 30 atos normativos (portarias, decretos presidenciais etc.) visando ampliar o acesso a armas e munições que podem ser adquiridas.

Entre as muitas iniciativas estão o decreto n.9. 695 de janeiro de 2019 visando facilitar o acesso a armas de fogo; o decreto n. 9.785, de maio do mesmo ano, ampliando as categorias profissionais que teriam acesso; a revogação, em abril de 2020,  de três portarias do Exército que tornavam mais rígido o rastreamento, identificação e marcação de armas e munições, atendendo a solicitação de atiradores CAC (implicando em maior restrição da capacidade das autoridades de rastrear e fiscalizar o acesso a armas de fogo) e a assinatura, no dia 12 de fevereiro de 2021, de quatro decretos elevando a quantidade de armas que uma pessoa pode comprar: de quatro para seis (antes, em 2019 havia sido aprovado a compra de duas para quatro),  os atiradores foram autorizados a adquirir até 60 armas e caçadores até 30 (para ter mais, é preciso à autorização do Exército) e subiu também o volume de munições que pode ser comprado: 2.000 para armas de uso restrito e 5.000 para armas de uso permitido.

Logo após a publicação dos decretos, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal e a ministra relatora do processo, Rosa Weber concedeu uma liminar suspendendo trechos dos decretos que facilitavam a posse e porte de armas. Como foi uma decisão monocrática, precisa do referendo do plenário do STF.

E o julgamento no STF começou no dia 16 de abril de 2021 (plenário virtual), tendo o ministro Edson Fachin votado com a relatora, afirmando em seu parecer, entre outras coisas,  que “não age, portanto, o Estado com a devida diligência fiscalizatória diante do dever de garantir o direito à vida e à segurança”.

No entanto, o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas do processo e o julgamento foi interrompido, só retornando cinco meses depois, em setembro de 2021, quando ele deu seu parecer, também favorável à suspensão dos decretos. Mas o julgamento foi novamente suspenso com o pedido de vistas do ministro Nunes Marques e ainda não foi retomado pelo STF. No momento, são três votos favoráveis à suspensão.

A apologia e maior flexibilidade no acesso e uso de armas, defendida pelo governo e as diversas iniciativas nesse sentido contribuíram para a ampliação da circulação de armas no país e o fato de que os brasileiros estão se armando cada vez mais. Uma matéria publicada pela BBC News por Mariana Schreiber (“Dois anos de maior acesso a armas, diminuiu a violência?”) publicada no dia 15 de fevereiro de 2021,  afirma que  em 2020 houve um aumento de 184%  em relação à soma de 2017 e 2018  e supera os seis anos anteriores (de 2013 a 2018) e mostra, com dados, que os dois anos de maior acesso a armas não  reduziu a violência: houve um aumento de 5% do número de assassinatos, revertendo uma queda que havia sido registrada em 2018. E, um dado relevante, 74% dos homicídios foram cometidos por arma de fogo.

Os entusiastas do uso de armas citam a queda dos homicídios no Brasil, relacionando população mais armada com a redução da violência, como fez o presidente da República em conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada no dia 21/2/2022  conforme matéria publicada no UOL pelo repórter Lucas Valença.

Seus defensores criticam o Estatuto do Desarmamento, que criou regras mais restritivas para acesso e penas mais duras para porte e posse ilegal de armas. No entanto, desconsideram o fato de que entre 2003 e 2018 houve redução de  mortes por armas de fogo. É que constata os relatórios do Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No relatório de 2020 afirma que  a taxa média anual de crescimento das mortes por armas de fogo passou de 6% entre 1980 e 2003 para 0,9% nos quinze anos após o Estatuto do Desarmamento (2003 a 2018). https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública ao defender maior controle de circulação de armas, apresenta quatro argumentos que considera relevantes : uma arma dentro de casa faz aumentar inúmeras vezes as chances de algum morador sofrer homicídio, suicídio ou morte por acidente; o aumento de homicídios motivados por conflitos de gênero e interpessoais (como brigas de vizinho, no trânsito, nos bares etc.); que  quanto mais armas no mercado legal, mais armas migrarão para o mercado ilegal, e  aumenta as chances de vitimização fatal para o próprio portador.

Segundo o Atlas da Violência de 2020 “Mesmo com todas as evidências científicas a favor do controle responsável das armas de fogo e pelo aperfeiçoamento do Estatuto do Desarmamento, a legislação instituída desde 2019 vai exatamente no sentido contrário”. São leis e portarias que “descaracterizaram o Estatuto, geraram incentivos à disseminação às armas de fogo e munição, e impuseram obstáculos à capacidade de rastreamento de munição utilizada em crimes”.

O que as pesquisas no Brasil (e outros países), indicam é que mais armas em circulação geram mais violência e aumento dos crimes letais intencionais e não o contrário. Assim as consequências da política armamentista são, entre outra, mais violência, e nesse sentido é uma falácia o argumento de que mais armas em circulação servirão para proteger os cidadãos, que a população estará mais segura quando armada. Não apenas não protegem como alimentam o ciclo da violência.