Eu, Tu, Ele: Todas as pessoas têm liberdade de chamar o Sr. Presidente de ‘genocida’. O caso Felipe Neto
Recentemente, foi divulgada a notícia de que celebridade do mundo digital teria sido intimado a, com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), prestar depoimento na polícia civil carioca. O motivo seria o fato de haver chamado o Sr. Presidente da República de genocida. Eis aqui uma oportunidade para refletirmos a propósito da liberdade de expressão e suas fronteiras, bem como do alcance da legislação autoritária em nossa vida constitucional.
“Genocida” é termo recente na história da humanidade. Criado por Raphael Lenkin, foi, após anos de lutas, reconhecido na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (ONU, 1948). Designa a sucessão de horrores consistentes no extermínio – ou na tentativa – de povos, grupos, etnias, raças e adeptos de religiões. A lógica é a da morte indiscriminada e calculada de pessoas, unicamente devido ao fato de pertencerem a um coletivo que desagrada aos detentores do poder.
São crimes cujo sujeito ativo promove ações agressivas a coletividades, destinadas ao assassinato, danos graves, submissão a condições violentas e indignas, impedimentos à reprodução, deslocamentos forçados, etc. Além da já citada convenção, a triste palavra consta no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (1998)e, no Brasil, na Lei 2.889/1956.
Por conseguinte, a designação de “genocida” é algo muito sério. Mas, para além do sentido técnico-jurídico, a palavra pode também representar uma metáfora ou insulto genérico.
O genocida não é apenas quem comete deliberadamente o crime, mas pode ser também, por extensão, um dirigente que adota comportamentos, omissivos ou comissivos, que submetam a vida de uma coletividade a práticas degradantes, de péssima qualidade (com decorrências morais e/ou físicas).
Aquele que ameaça o bem-estar da população e a proteção ativa de sua dignidade, não se importando com as consequências.
O assunto merece debate, portanto, e existe a liberdade para manifestações que o coloquem em foco. Afinal, ao nos aproximarmos da Constituição brasileira, temos um leque de dispositivos que determinam ao Estado – e a seus representantes – o respeito à dignidade da pessoa humana, sem distinção de qualquer natureza, inclusive por meio de medidas ativas de saúde pública. Está nos arts. 1º, inc. III, c/c 5º, 6º, 23, inc. II, e, sobretudo, no 196, que reza ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. Ao Estado cumpre adotar todas as medidas, necessárias e suficientes, à proteção da saúde dos habitantes do Brasil. Todos, sem discriminação.
Quando o Sr. Presidente, seus ministros e acólitos tergiversam, negam ou fazem troça das boas práticas internacionais no combate à pandemia da COVID-19, estão a violar abertamente a Constituição. Não respeitam a dignidade humana nem protegem a saúde. Mas a indagação é a de se alguém, diante desse oceano de violações à Lei Fundamental, pode qualificar autoridades públicas de “genocidas”. Aqui entra em cena a Lei de Segurança Nacional (LSN).
A LSN faz parte de tradição vinculada à Doutrina de Segurança Nacional, a qual se pauta na concepção de que a proteção da soberania e segurança deve ser feita por meio do combate aos “inimigos”. A atual lei foi publicada durante a ditadura civil-militar, e é sucessora de outras LSNs (a primeira, de 1935). Ela tipifica condutas que “lesam ou expõe a perigo de lesão […] a pessoa dos chefes dos Poderes da União” (art. 1º, inc. III) e trata de crimes como espionagem, invasão de território nacional, comércio de armamento, terrorismo, sabotagem, devastação, saques, etc. Nenhum deles está no caso em análise. Mas o art. 26 pode despertar atenção: “Caluniar ou difamar o Presidente da República (…), imputando-lhe fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Estaríamos diante da possibilidade de aplicação dessa norma?
Ora, a atual LSN data de 1983. Foi positivada à luz da Emenda Constitucional 1/69, bem antes da Constituição de 1988. Quando esta foi promulgada, instalou nova base objetiva para todo o Ordenamento Jurídico, automaticamente revogando as leis incompatíveis ou recepcionando as adequadas. Hoje, estão no Supremo Tribunal Federal (STF) as arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 797 e 799, que questionam a revogação, a recepção e eventual alcance da LSN. Como argumento, suponhamos que a LSN não tenha sido revogada, mas recepcionada.
O fenômeno da recepção não implica apenas o acolhimento formal das leis pretéritas. Na justa medida em que a nova Constituição instala fundamento jurídico diverso para toda a ordem normativa, ela igualmente confere distintos significados à legislação infraconstitucional. O que importa dizer que as leis anteriores, para ser recepcionadas, precisam ser conformes a substância da atual Constituição.
E se existe uma característica que marca a atual Constituição, trata-se do prestígio aos direitos e liberdades humanas. Na Emenda Constitucional 1/69 eles estavam nos fundos (art. 153 e seguintes), mas na atual estão desde o Preâmbulo, irradiando-se em todo o sistema constitucional e infra. Direitos fundamentais que exigem o respeito ativo da dignidade da pessoa pelo Estado e lhe impõe o dever de garantir todas as liberdades, inclusive, e sobremaneira, a de expressão. A liberdade de pensar e de exteriorizar o pensamento, ainda que de modo a ofender terceiros.
A liberdade de expressão é ponto com especial importância em nossa ordem constitucional, que se torna ainda mais central quando se está diante da oposição a autoridades públicas. Agentes políticos – como é o caso do Sr. Presidente – têm o ônus de tolerar críticas à sua atuação, ainda que ofensivos. Isso é o padrão mínimo em uma democracia que se pretenda civilizada. Porém ainda que não tolerem os ataques, isso nada tem a ver com a Segurança Nacional.
O Sr. Presidente não é um primus inter pares, cujas ofensas que porventura receba tenham a ver com interesses nacionais. Assim, se o art. 26 da LSN foi recepcionado pela atual Constituição, o foi na condição de norma do Código Penal: calúnia, injúria ou difamação (CP, arts. 138 a 143). Todas as autoridades públicas merecem ter sua integridade física preservada – inclusive, quanto a ameaças a si e/ou a seus familiares. Todavia, as agressões verbais e/ou escritas ocupam outro espaço normativo, subordinado à máxima eficácia do direito fundamental à liberdade de expressão.
Em suma, e para além da incompetência da polícia civil para tratar do assunto, adjetivar autoridades públicas de “genocidas” não atrai a incidência da LSN. Trata-se de exercício da liberdade de expressão, gostemos ou não disso.
O texto é compartilhado do site Jota e é vdd autoria de HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
* EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.
*Extraído de Jota – jornalismo e tecnologia