Por que precisamos romper com o Sistema Evangélico Brasileiro?
Por Ramon Nascimento *
A identidade de um indivíduo é construída por suas relações sociais, sejam elas familiares, religiosas, políticas, econômicas, educacionais e etc. E nesse processo de construção identitária, muitas vezes, precisamos acertar contas com o nosso próprio “eu” e com Deus. Não escrevo este texto apenas com a identidade de pesquisador de mídia e religião, mas todas as minhas palavras também estão atravessadas por minha formação religiosa, moldada pela igreja evangélica. Aliás, compreendo o Medium muito mais como um espaço do meu “eu” pessoal do que como espaço acadêmico. Então se você notar algum juízo de valor no texto é porque quem escreveu foi o Ramon e não o pesquisador. Aqui não estou escrevendo um trabalho acadêmico, mas um texto construído a partir de olhares de quem foi formado por uma cultura evangélica. Vivo angustiado com tudo que estamos vivendo e acredito que chegou a hora de rompermos com o sistema religioso evangélico.
Lembro dos momentos em que fui abraçado por Cristo e pela igreja evangélica durante a minha infância, congregando em uma igreja pentecostal localizada no mesmo bairro em que eu morava na cidade de João Pessoa/PB. Foram tempos riquíssimos. Tempos da inocência. Tempos em que orávamos pelo país sem interesses políticos e religiosos. Apesar que este era um período em que o sistema evangélico já caminhava a passos largos em busca de poder político na esfera pública.
E mesmo sabendo hoje que, desde a Ditadura no Brasil, o movimento evangélico sempre se aproximou dos tentáculos do poder e, com a redemocratização do país, a partir de 1986, consolidou a Bancada Evangélica no Congresso Nacional. No entanto, não sabíamos nada disso e por isso reafirmo: “eram tempos da inocência”. O fato é que as informações que tínhamos sobre o sistema evangélico não eram corrosivas como são hoje em dia.
A professora de Comunicação, Magali do Nascimento Cunha, é uma das principais referências nos estudos sobre Evangélicos e Política no Brasil. Em entrevista publicada no livro “Mídia e Religião: perspectivas sobre um fenômeno em transformação” (2021), a professora destaca:
“Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira Bancada Evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se mete em política” foi sepultada. A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”. Mais recentemente, esta noção foi transformada para: “irmão vota em quem apoia irmão”, abrindo-se o caminho para alianças com personagens e grupos não-religiosos, e, ao mesmo tempo, para: “irmão não vota nos inimigos da fé”, estabelecendo-se a demonização de personagens e grupos não alinhados” (CUNHA, 2021, p. 27, grifo nosso).
Agora todos nós estamos vivendo o contexto de uma pandemia que matou, até o momento da escrita deste parágrafo, mais de 580 mil pessoas só no Brasil, em menos de dois anos. Estamos vivendo dias em que mais de 14 milhões de pessoas estão desempregadas (e reitero que este número não é exclusivo dos dias atuais. A taxa de desempregados permanece alta há, pelo menos, seis anos). O valor do combustível atinge uma marca inimaginável, fazendo com que pessoas que sobrevivem de trabalhos via aplicativos como o Uber, por exemplo, desistam de trabalhar por não ter condições de pagar as contas do mês. O gás de cozinha também é um vilão dos absurdos preços em nosso país. O feijão, o arroz, o óleo, o leite, a carne bovina e até o frango tiveram de ser reduzidos na mesa da maioria dos brasileiros, inclusive na minha. Estamos a ponto de termos um colapso no sistema de energia elétrica do país. O fogo já começou a destruir o nosso meio ambiente mais uma vez. E como se tudo isso não bastasse, 19 milhões de brasileiros vivem em situação de fome.
Todas essas tragédias são mais do que suficientes, necessárias e urgentes para o nosso debate público, incluindo lideranças políticas, organizações, instituições, representações da sociedade civil e até as lideranças religiosas do nosso país. Mas é aqui que quero fazer um recorte provocativo no texto e lançar uma pergunta: quais os assuntos que mais ocupam a mente dos que exercem liderança evangélica-midiática no Brasil?
“O maior barulho e ocupação dos agentes do Sistema Evangélico Brasileiro tem sido operacionalizado pela “nova face do conservadorismo religioso, um neoconservadorismo que emerge como reação a transformações socioculturais que o Brasil tem experimentado” (CUNHA, 2021, p. 29).
Com todo o respeito aos pastores comprometidos com a fé cristã, aqui refiro-me aos pastores de negócios religiosos, políticos e midiáticos, que se utilizam de plataformas de comunicação, como os próprios púlpitos das igrejas e as mídias digitais, para proliferarem desinformações com o objetivo de obter vantagens políticas. Sendo assim, as narrativas falsas e enganosas vão preenchendo mentes e corações de pessoas desavisadas e, diante da realidade social brasileira, seus olhos permanecem fechados.
Esses pastores fazem parte de um sistema que trocou a mensagem cristã por uma idolatria política. De acordo com o professor de Ciência Política, David T. Koyzis, doutor em Filosofia,
“todas as ideologias, sem exceção, são como tipos modernos do fenômeno perene da idolatria, trazendo em seu bojo suas próprias teorias sobre o pecado e a redenção” (KOYZIS, 2014, p. 18).
São esses mesmos agentes do Sistema Evangélico Brasileiro que estão convocando os membros de suas respectivas igrejas para participarem de uma manifestação de oração e jejum no dia 07 de setembro de 2021. Convocação esta que acontecerá no mesmo dia em que os seguidores do bolsonarismo ocuparão as ruas com as mesmas pautas que tais pastores defendem.
Sabemos que oração e jejum não é novidade para a igreja, pelo contrário, isso já é prática e dever comum daqueles que seguem a Cristo. E lembro que no tempo da inocência, a qual já fiz referência aqui no texto, os meus pastores, pais e professores de Escola Dominical falavam sobre a relevância do jejum e a importância de mantê-lo em secreto. Jejum é algo pessoal. É uma prática entre você e Deus.
Mas em tempos de sociedade midiatizada, em que tudo segue lógicas de publicização e compartilhamento, as convocações pastorais de jejum e oração ganham contornos de natureza política, transbordando os limites da religião. Orar pelo país e pelo seu povo é uma atitude cristã. Mas orar com objetivos de reforço a uma ideologia específica e pela permanência de seus mandatários no poder é uma atitude que agride a essência do Cristianismo.
É fato que os pastores de negócios religiosos estão aproveitando o contexto político brasileiro para reforçar o apoio a uma ilusão ideológica-política, e por que também não dizer, diabólica, ao compartilharem “terrorismo informacional” nas mídias sociais de que o país está sendo perseguido por forças do Comunismo. E o que percebemos é que, enquanto milhões de pessoas passam fome, esses pastores estão convocando os evangélicos para que o Brasil não se torne uma Venezuela. É como se a preocupação com a realidade social brasileira fosse varrida para baixo do tapete, enquanto a ilusão de uma ideologia política segue se sustentando via narrativas sem escrúpulos.
É importante registrar aqui que esses pastores são os mesmos que abraçaram vários governantes de plantão, incluindo os políticos do PT, a quem hoje eles declaram guerra. Ou seja, são pastores que funcionam como uma espécie de “Centrão” religioso se agarrando aos tentáculos do poder, se balançando de um lado para o outro.
O Sistema Evangélico Brasileiro é sustentado por negócios religiosos. Não estou me referindo aos negócios de manutenção religiosa, pelo contrário, são negócios criados para deturpar a natureza cristã e manipular pessoas na escravidão de um poder. Esse sistema não tem nada a ver com a igreja cristã evangélica. Precisamos compreender e fazer a distinção entre o joio e o trigo. Falar de Sistema Evangélico Brasileiro não é a mesma coisa de falar de Igreja Evangélica Brasileira, esta que se constitui ao longo dos séculos e é formada atualmente por milhões de pessoas. O Sistema Evangélico Brasileiro também não tem nada a ver com os evangélicos e, muito menos, com o Evangelho de Cristo. Não podemos generalizar a ponto de não reconhecer as igrejas evangélicas que transformam o Brasil e estão preocupadas com vidas, cujas lideranças desenvolvem um excelente trabalho e não podem ser confundidas com pessoas que usam a religião para proveitos outros. Porque enquanto a boa igreja se preocupa com vidas, o sistema está preocupado com o poder político e religioso. Esses “falsos profetas” o próprio Cristo já os repreendeu.
Precisamos, urgentemente, romper com esse sistema diabólico que usa o púlpito e as mentes desavisadas para proliferar insegurança, ódio e desinformação nas mídias sociais. Se faz mais do que necessária a caminhada na esperança de uma nova expressão de fé, comprometida com o legado de Jesus, sendo antes de tudo, um cristão ou cristã, na essência de seguidores de Jesus Cristo, o verdadeiro e genuíno Messias.
Que Deus, em sua infinita misericórdia, abra-nos os olhos para não permanecermos na cegueira religiosa, intelectual, social e política de um sistema religioso que não cuida de pessoas, mas de negócios! E lembremos: nunca foi benéfica a relação Igreja e Estado, por que seria agora?
Referências:
CUNHA, Magali do Nascimento. Evangélicos no Brasil: mercado, política e inserção midiática no espaço público. [Entrevista concedida a Jênifer Rosa de Oliveira e Marco Túlio de Sousa]. In SOUSA, Marco Túlio de. Mídia e religião: perspectivas sobre um fenômeno em transformação. São Paulo: Recriar, 2021.
KOYZIS, David. T. Visões & ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas. Tradução de Lucas G. Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014.
*Ramon Nascimento é Doutorando e Mestre em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEM/UFRN), na linha de pesquisa Estudos da Mídia e Produção de Sentido.