Opinião

A democracia não pode ser tolerante com golpistas

“O sistema prisional vai acabar, os criminosos tomarão as ruas. Nós, os cidadãos de bem, trabalhadores, honestos, servos do senhor, devotos da família, perderemos nossa liberdade, ficaremos à mercê da marginalidade. Nossos filhos perderão a noção de certo e errado, entenderão que o crime compensa.”

O texto  acima foi compartilhados por extremistas bolsonaristas nos últimos dias nas redes sociais, uma esfera que passaram a dominar.  Trata-se de um chamamento aos “patriotas” do país para que se unam e barrem um suposto convite do ministro da Justiça, Flávio Dino,  para que Michel Foucault atue como seu mentor.

Dino respondeu com ironia: “Venho a público esclarecer que não consigo ressuscitar pessoas e que, portanto, se cuida de uma mentira. Foucault faleceu em 1984”, esclareceu.

Foucault foi um pensador francês que problematizou a relação entre poder e conhecimento como forma de controle pelas instituições sociais, era antirracista e defendia a reforma do sistema penitenciário. Esta pequena apresentação resume o ódio dos bosonaristas ao pensamento crítico e seu tesão e necessidade de difundir fake news.

O discurso da extrema-direita bolsonarista é batido, tem uma estética muito clichê, mas que funciona  estrategicamente porque mexe com pulsões e questões culturais ainda muito arraigadas, por isso mesmo mobiliza tanta gente. Os signos que permeiam a narrativa bolsonarista – pátria, família, Deus e liberdade – atuam no campo da fé, portanto, na irracionalidade, haja vista que a fé orbita no plano da emoção e não no da razão. O medo como catalizador de ressentimentos é outro ingrediente muito presente, tanto que “o fantasma vermelho do comunismo” está sempre presente, mesmo que veladamente.

Moralista e ultraconservador, esse movimento reacionário conhecido como bolsonarismo procura demonizar a ideia de igualdade quando relacionada à inclusão e à diversidade. Negros, mulheres, LGBT’s ou o que quer que represente uma ameaça aos privilégios de homens brancos que entendem como “natural” sua supremacia social, política e econômica devem ser subjugados.

No Brasil, em especial, dada nossa colonização, perpertuamos valores impostos em um passado que nunca passou: racismo, machismo… Esse caldo cultural que escraviza e alimenta toda sorte de preconceitos é a fonte, em boa medida, de tantos retrocessos que vimos e vemos atualmente, a exemplo dos ataques golpistas em Brasília dia oito de janeiro e, antes disso, dos acampamentos de extremistas na frente de quarteis pelo país afora.

Mas é preciso relacionar tais eventos com a direita tradicional. Sem base social, essa direita, representada sobretudo pelo PSDB, procurou se organizar pelas redes sociais há pouco mais de 20 anos. O Orkut foi berço do ninho da serpente na época. Havia ali vários grupos organizados por think tanks que propunham não apenas a redução do Estado, mas que este servisse aos interesses do capital privado. O finado Olavo de Carvalho orbitava nesse meio.

Anos mais tarde, na tentativa de recuperar seu poder político, essa direita aproveitou escândalos envolvendo a Petrobrás na gestão pestista e foi para as ruas usando  a corrupção como pano de fundo para atrair apoio popular. Quem não lembra dos protestos contra o aumento das passagens de ônibus em SP? Dali em diante uma série de manifestações organizadas pelas elites econômica e política do país foram produzidas por grupos/movimentos como o Cansei, o MBL, o Endireita Brasil (criado por Ricardo Salles, o ministro da boiada de Jair Bolsonaro). Tudo com o apoio da mídia hegemônica.

Não bastou. A direita brasileira, para derrotar as forças progressistas, sobretudo o Partido dos Trabalhadores e seu símbolo maior, o atual presidente Lula, aliou-se à extrema-direita, fortaleceu o bolsonarismo, mas acabou engolida por ele. Tanto que o PSDB, que desde o início da redemocratização do país polarizou com o PT, definhou, precisando se fundir com outra legenda, o Cidadania, em 2022. Ficou o bolsonarismo e sua sanha predatória contra os direitos sociais e trabalhistas em nome do “deus-mercado” e contra os avanços civilizatórios resultantes do Pacto Democrático de 88.

O foco do bolsonarismo é a destruição do progresso para que os ricos continuem mais ricos às custas do trabalhador que sustenta a espinha dorsal da economia do país. O bolsonarismo usa as deficiências da democracia contra ela, alimenta o medo e, com ele, a ignorância: “se ela dá direitos demais, falta emprego”; se reconhece a população LGBTs, por exemplo, “subverte a família”.

O bolsonarismo usa a lógica da inversão de valores em benefício próprio: acusa os que discordam de seus métodos e do ódio que lhe caracteriza a natureza. “Vão fechar igrejas, vão soltar criminosos, vão transformar o Brasil em uma Venezuela”. Ora, quem expulsou fiéis porque pediam para que o púlpito não virasse palanque eleitoral ou porque usavam alguma peça de roupa na cor vermelha nas últimas eleições? Líderes religiosos bolsonaristas.

E quantos bolsonaristas denunciados por práticas escusas! Os filhos de Bolsonaro são acusados de praticar rachadinhas. Dando nome aos bois: desvio de dinheiro público. E o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, que é investigado por manter, autorizado segundo ele por Jair Bolsonaro, um “gabinete paralelo” que transferia verbas federais para lideranças religiosas sem qualquer vínculo com a pasta? Os pastores envolvidos cobravam propina para libertar o dinheiro para prefeituras. Tudo documentado em um esquema com as digitais do governo Bolsonaro.

Ainda tem o Salles, aquele do Endireita Brasil que citamos acima. Ele atuou para favorecer mineradoras ilegais e passou a ser investigado também por exportação ilegal de madeira. Sem falar no próprio Bolsonaro, que passou todo o mandato esticando a corda com os demais Poderes da República – atribuídos pela Constituição de 88 – e estimulando insubordinação civil.

Na última transmissão ao vivo que fez, já derrotado, Bolsonaro admitiu que tentou reverter o resultado das urnas mas não teve apoio. Dias atrás, a Polícia Federal encontrou, na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, agora preso, a “Minuta do Golpe” e uma inequívoca – e absurda – tentativa de fundamentar juridicamente a constitucionalidade de um decreto golpista, para decretar Estado de Defesa e intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o objetivo de devolver “a ordem pública e a paz social” ao Brasil.

Isso nos leva de volta ao oito de janeiro e aos ataques contra os Três Poderes da República, que configuram-se, portanto, como um cristalino e orquestrado atentado à democracia com apoio de gente graúda das Forças Armadas conforme o interventor da Segurança no Distrito Federal, Ricardo Capelli, anunciou. É também cristalino ato criminoso de insubordição que denuncia o apreço dos fardados ao poder político. Os ataques são espólio de uma política fascista sustentada por Jair Bolsonaro, cuja base é fundamentalista em todos os seus aspectos.

E por falar nos militares…

É bom lembrar que as Forças Armadas não são um poder moderador, estando subordinadas à Presidência da República. Há um motivo para isso. Quem tem a força das armas não pode, sob hipótese alguma, ter  nas mãos o poder político,  do contrário a balança fica desigual, a divergência resta comprometida e a democracia, combalida. Lugar de “milico” é no quartel; fazê-los voltar pra caserna é que são elas. Contudo, o terror de agora pode ser a deixa para o governo Lula arrumar a casa.

O analista político Breno Altman é certeiro quando cita a “quebra de tutela militar” e defende mudanças no Artigo 142 da Constituição, que regulamenta o papel das Forças Armadas, “constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica”, destinadas “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Altman propõe mudanças na “formação e promoção dos militares para que passem pelo Presidente da República e não sejam de livre-arbítrio dos militares”; defende o fim do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) visto que “é outro dos legados do período ditatorial”. Para ele deve ser “criado um serviço civil de inteligencia e segurança presidencial como existe em qualquer páis democrático”. Ainda como remédio e resultado de uma Reforma Militar, ele  sugere a quebra de privilégios e do “direito de militares de serem julgados por tribunais especiais”.

Liberdade de Expressão

Argumentam, os extremistas, que sua liberdade de expressão está sendo tolhida. Ora, em um regime democrático cabem liberdade de pensamento religioso e político, mas dentro das regras do jogo democrático. Significa que não cabe reclamá-la para o comentimento de crimes. Pedir intervenção militar é crime. O direito não é absoluto e a liberdade de expressão, como um atributo da democracia, não pode nem deve ser empregada contra ela mesma.  Para estancar o processo de corrosão democrática, os atos golpistas precisam ser desmobilizados e todos os envolvidos identificados e responsabilizados, sejam civis ou militares. Tolerar já não é mais uma opção.