Opinião

São João da Paraíba: nem memória, nem tradição, nem cultura

Depois de duros anos de pandemia da Covid-19, os festejos juninos voltaram, mas com grande revés na Paraíba. O São João este ano perdeu em graça, beleza e autenticidade. Muitos gestores demonstraram zero compromisso com a importância cultural da festa que tem o DNA do Nordeste, que retrata a resistência e a riqueza de um povo. “Assassinaram o São João”, ouvi de um. “Cancelaram o São João”, escutei de outro. Palavras que carregam o sentimento da dor pelo desrespeito visto. Em Monteiro, terra de Flávio José, o 23 de junho foi tomado pelo funk. No lugar do arrasta pé, bundas arrastando no chão. Não foi caso isolado. Campina grande, Bananeiras e outras cidades conhecidas pelos festejos que produzem abusaram do sertanejo, do funk, da música eletrônica, pancadão e outros estilos sem identidade regional com o Nordeste e com o São João.

E vejam, o problema nem está na abertura musical apesar de não gostar nenhum pouco desta proposta; o problema é o abuso. Há um apagamento, deliberado ou não, mas há, do que precisa ser precioso para nós. A quem interessa essa descaracterização que custa altas somas por meio de cachês assombrosos, seja por meio exclusivo de dinheiro público ou de parcerias público-privadas, como é o caso da festa em Campina? Onde entra a responsabilização das prefeituras e vigilância sobre os contratos firmados com o poder público? É preciso que se investigue, levando em conta os critérios de economicidade e razoabilidade diante da negação da arte e cultura popular do Nordeste. Afinal, não é festival de música é festejo junino, ou pelo menos deveria ser.

Quando vivo, Ariano Suassuna, criador do movimento armorial e um apaixonado pela cultura do Nordeste, tendo dado a ela grande contribuição, citou, certa vez, o Sociólogo italiano Domênico de Masi sobre essa invasão cultural e sua relação com poder e hegemonia:

“se de fato o uso dos exércitos comporta altos custos e considerável dificuldade prática, é sempre mais eficiente a colonização cultural por meio dos grandes aparatos da informação e do entretenimento, que mantém quietos os governados e orientam o consumo”.

Ariano chamava atenção para essa apropriação que mata o que nos define e fortalece, abrindo espaço para dominação. Estamos vivendo, de fato, uma invasão estético-cultural que degenera nossa capacidade de entender que nossas raízes importam! E gestores têm que ser responsabilizados quando endossam isso. Afinal, são pagos para fomentar cultura, educação e arte também!

Outro dia ouvi a “tese” que essa invasão sertaneja ao São João do Nordeste tinha relação, em grande medida, com o agronegócio, sua tentativa de dominar o mercado e a política locais. A invasão se daria, primeiro, então, pela cultura. Ora, a concentração de poder econômico e político pode influenciar a forma como a cultura é valorizada e promovida na região, privilegiando narrativas e símbolos que estejam alinhados aos interesses do agronegócio. Faz sentido. Sem falar nos esquema de partilha de cachês e possibilidade de enriquecimento ilícito alimentado por gestores no período junino como já amplamente denunciado pela imprensa. Não vou nem entrar nesse mérito pela imoralidade que ele resume em si mesmo.

Sem perder de vista o que o bom Ariano nos trouxe, o cito uma vez mais. Ele costumava dizer: “essa invasão se enfrenta pela cultura local”, ou seja, com investimento e valorização do próprio Nordeste. A gente não quer só São João, a gente quer São João com identidade, com compromisso, com respeito à nossa diversidade, aos nossos artistas e cancioneiro popular! E as pessoas precisam ter consciência disso porque toda resistência a esse processo de alienação só pode existir se houver consciência. Não é possível normalizar o que se viu e produziu aqui neste 2023.