Opinião

Entre o populismo e o autoritarismo – o bolsonarismo como manifestação do fascismo

Rejane Negreiros

Nos últimos anos, o Brasil vem experimentando a ascensão de um fenômeno político que desafiou as normas tradicionais da democracia liberal: o bolsonarismo. Caracterizado por uma retórica de oposição às instituições democráticas e ao establishment político, o bolsonarismo se insere dentro de um espectro mais amplo de movimentos populistas e autoritários que ganharam força em diversas partes do mundo. Inspirado por elementos do fascismo, pela antipolítica e pela lógica populista, o bolsonarismo configura-se como uma expressão contemporânea da crise da democracia liberal, podendo ser entendido, em primeiro lugar, como um movimento reacionário que se apropria do discurso da antipolítica. Esse discurso, que ganha força em momentos de crise de representatividade, visa deslegitimar as instituições democráticas e promover a ideia de que a política tradicional está corrompida e distante dos interesses do povo. Ao se colocar como o “outsider” que desafia o sistema, Jair Bolsonaro personificou esse movimento no Brasil, consolidando-se como a figura central de uma nova direita que rejeita a mediação política e a construção de consensos. A antipolítica, neste contexto, é a negação da política institucional e da própria ideia de pluralismo, coloca em xeque o papel das instituições democráticas e cria um ambiente propício para a emergência de lideranças autoritárias, que reivindicam uma suposta legitimidade direta com o “povo”, em detrimento da política representativa tradicional.

A relação entre bolsonarismo e populismo é central para compreender o fenômeno. O teórico político argentino Ernesto Laclau afirma que o populismo não é uma ideologia em si, mas uma lógica política que opera através da criação de uma dicotomia entre o “povo” e seus inimigos. Essa construção dualista é característica dos regimes populistas e foi amplamente utilizada por Bolsonaro, que, ao longo de sua campanha e durante seu governo, promoveu uma narrativa de “nós contra eles”. No bolsonarismo, o “povo” é definido como uma entidade homogênea, composta por cidadãos comuns, patriotas e trabalhadores, enquanto os inimigos são as elites políticas, a imprensa, as universidades e os movimentos sociais. A estratégia populista de dividir a sociedade em dois campos irreconciliáveis facilita a concentração de poder em uma liderança carismática que se coloca como única capaz de representar a verdadeira vontade popular.

A liderança carismática é outro ponto central do bolsonarismo como um fenômeno populista. Jair Bolsonaro, com seu discurso simplificado e direto, conseguiu mobilizar milhões de brasileiros que viam nele uma alternativa radical ao status quo político. Sua popularidade baseia-se na sua habilidade de explorar ansiedades sociais, especialmente em relação à segurança pública, moralidade e corrupção, temas caros ao imaginário conservador brasileiro. No entanto, o bolsonarismo não pode ser compreendido apenas como um populismo de direita. Ele também carrega traços de fascismo, particularmente na sua relação com a violência e com a negação da política. O fascismo é caracterizado pela glorificação da força, pela exaltação de uma nação homogênea e pela intolerância ao pluralismo. Embora o bolsonarismo não possa ser classificado como fascismo em sua forma clássica, ele adota práticas e discursos que ecoam elementos fascistas. A violência, seja simbólica ou literal, está no cerne do bolsonarismo, que promove um discurso de combate implacável aos “inimigos da nação”, justificando medidas autoritárias em nome da segurança e da ordem. O culto à masculinidade, à ordem militar e à repressão de opositores políticos são traços que aproximam o bolsonarismo de movimentos fascistas do passado.

Outro ponto a destacar é que o bolsonarismo se fundamenta em uma lógica de negação da política, que se aproxima daquilo que Hannah Arendt  descreveu como a “banalidade do mal” nos regimes totalitários. Arendt argumenta que, em regimes autoritários, a negação da política e do debate público leva à naturalização da violência e da repressão, esvaziando o espaço público de qualquer possibilidade de dissenso. No caso do bolsonarismo, essa negação se manifesta na rejeição ao diálogo com outros poderes da República, na tentativa de silenciar a imprensa e na constante polarização e radicalização do debate político. Essa postura é reforçada por uma base de apoio mobilizada por discursos incendiários, que tratam a política como um campo de batalha moral e não como um espaço de mediação de interesses divergentes.

O bolsonarismo, assim, não só desafia os princípios da democracia liberal, mas também se articula como uma resposta às crises sociais e econômicas do Brasil. A promessa de um retorno à ordem, à moralidade e à segurança, elementos centrais do discurso bolsonarista, ressoa entre setores da população que se sentem desamparados e ameaçados pelas transformações sociais recentes. O movimento, no entanto, ao invés de propor soluções políticas para os problemas que identifica, prefere a lógica do embate e da destruição, características que o conectam ao fascismo e à antipolítica.

O Bolsonarismo e a Política da Antipolítica

O bolsonarismo emerge como a epítome da política da antipolítica, caracterizando-se por uma estratégia que busca modular comportamentos e atitudes sociais através da força e da disciplina, fundamentada em uma lógica de conflito permanente para manter a sociedade em um estado contínuo de convulsão, em que a coerência e os fatos perdem relevância. Essa crise de confiança nas instituições brasileiras, acentuada durante a operação Lava Jato, colocou a pauta moral acima das políticas públicas, preparando o terreno para a ascensão do bolsonarismo. A desilusão com o sistema político tradicional foi catalisada por uma narrativa que promovia uma moralização da política, enquanto corroía as bases institucionais da democracia. Sem o fenômeno do lavajatismo, é provável que o bolsonarismo não tivesse encontrado as condições necessárias para se estabelecer como uma força eleitoral viável.

O conceito de populismo reacionário  explorado por Cristian Dunker (2020) e Christian Lynch (2022) oferece uma importante lente analítica para entender o bolsonarismo e suas características. Dunker argumenta que o populismo reacionário representa uma resposta psíquica às angústias sociais e culturais, especialmente em tempos de crise. No Brasil, essas angústias foram exacerbadas pela insegurança, pelo medo de um colapso moral e pela percepção de uma ameaça às tradições. O discurso bolsonarista soube capitalizar esses temores, apresentando Bolsonaro como um líder carismático capaz de restaurar a ordem social e moral. Lynch discute o populismo reacionário no contexto da democracia iliberal, onde há uma centralização do poder nas mãos de um líder e a eliminação de inimigos internos e externos da nação. Esse movimento reacionário não seria simplesmente um fenômeno político, mas uma ameaça à própria ideia de democracia pluralista.

O bolsonarismo pode ser interpretado ainda como uma manifestação do pós-fascismo, que descreve regimes políticos autoritários que operam dentro das regras democráticas, mas visam subvertê-las. Frases como “minha bandeira jamais será vermelha” tornaram-se símbolos dessa retórica anticomunista e autoritária que ganhou musculatura em um cenário de fragilidade da memória histórica no Brasil, onde o processo de rememoração da ditadura militar foi inadequado. Essa lacuna permitiu que figuras como Bolsonaro reabilitassem o discurso autoritário, celebrando os crimes do passado e utilizando-os como base para uma nova forma de autoritarismo político.

O bolsonarismo insere-se em um contexto global de ascensão das novas direitas, que mesclam ultraliberalismo, neoconservadorismo e fundamentalismo religioso. Esses grupos utilizam as fake news como arma política, criando uma “máquina de propaganda azeitada” que manipula emoções e anula a razão (Wardle, 2021). A manipulação da verdade e a criação de uma realidade alternativa foram cruciais para a campanha eleitoral de 2018, permitindo a Bolsonaro polarizar a disputa com o PT e eclipsar o PSDB como a principal força de oposição. A linguagem disruptiva, as promessas simplistas e a criminalização da política tradicional foram centrais para o sucesso do bolsonarismo, que conseguiu mobilizar o capital financeiro, as igrejas evangélicas e as forças conservadoras. Essa nova configuração política não só redefine as alianças estratégicas no Brasil, mas também exemplifica a intersecção entre práticas autoritárias e discursos populistas que permeiam a política contemporânea.

A relação entre o populismo reacionário e o autoritarismo é igualmente intrínseca, uma vez que ambos buscam minar os fundamentos da democracia em nome da ordem e da segurança. A crítica à corrupção é utilizada como um pretexto para justificar medidas autoritárias e a centralização do poder. Assim, o bolsonarismo se revela não apenas como uma resposta a crises políticas e sociais, mas como parte de um fenômeno mais amplo que caracteriza a política contemporânea: a ascensão do populismo reacionário, do autoritarismo e da extrema direita, uma intersecção de ideologias e práticas que redefine a política brasileira.

A conclusão a que chegamos a partir da análise das interseções entre fascistas, populistas, autoritários e extremistas de direita, sob uma perspectiva transnacional e comparativa, é que há um padrão preocupante que desafia a democracia contemporânea. O fascismo, como uma ideologia política que busca a totalidade do poder e a eliminação de dissidências, manifesta-se nas novas direitas globais, que reconfiguram o autoritarismo e a retórica nacionalista à luz das ansiedades sociais modernas.

Os discursos populistas, como os vistos no bolsonarismo, aproveitam-se da desilusão com as instituições democráticas e a insatisfação popular, posicionando-se como alternativas “puras” em oposição a uma “elite corrupta”. Essa dinâmica é apoiada por estratégias de comunicação que utilizam fake news e desinformação, criando realidades alternativas que visam deslegitimar o debate democrático e fomentar a polarização social.

Além disso, a fragilidade da memória histórica, evidenciada pela incapacidade de confrontar adequadamente legados autoritários, como os regimes militares na América Latina, contribui para a normalização de discursos e práticas que reabilitam o autoritarismo. A falta de um debate crítico sobre esses passados sombrios alimenta uma cultura política em que o populismo reacionário pode prosperar sem contestação significativa. Por isso, a ascensão de figuras políticas que evocam o passado autoritário, como Bolsonaro no Brasil, não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um fenômeno global que reconfigura a política contemporânea. O desafio atual é garantir que as lições do passado sejam efetivamente aprendidas, e que as sociedades contemporâneas não repitam os erros que levaram à erosão da democracia em diversos países. A luta pela preservação dos direitos civis e das liberdades individuais é, portanto, um imperativo moral e político em face do ressurgimento de discursos e práticas que ameaçam os fundamentos da democracia.