A caverna antidemocrática à luz da República
Um dos textos mais elucidativos que eu já li na minha vida é a Alegoria da caverna, também conhecida como parábola da caverna ou mito da caverna, constante do livro VII da República, do filósofo grego Platão. O texto trata-se de um diálogo que se refere ao predomínio do conhecimento racional sobre o conhecimento banal ou vulgar. O resumo do texto, a grosso modo, é o seguinte:
Existia uma caverna na qual viviam pessoas amarradas desde a infância. Estavam de costas para a saída e não se viravam para vê-la por conta de correntes que os prendiam. Eles estavam envoltos por uma grande penumbra, recebendo pouca luz de fora da caverna. Só visualizavam sombras, refletidas no fundo das paredes. As pessoas do lado de fora tinham suas sombras refletidas e os prisioneiros atribuíam a elas vozes e sons que ouviam do lado fora. Um dia, um prisioneiro se livrou das correntes e resolveu sair. Num primeiro momento, a luz o cegou, e só com o tempo o homem foi apreendendo as verdadeiras formas, cores e características dos seres exteriores àquele recôndito espaço que fora criado. Posteriormente, o homem voltou à caverna e tentou convencer seus pares de sua descoberta. Surpreendentemente, eles não aceitaram suas colocações e o ameaçaram de morte. Esses homens, acorrentados dentro da caverna, não conseguiriam encontrar a verdade, a luz de um conhecimento maior, pois estariam impossibilitados de se locomoverem e, assim, mantêm-se presos as suas coisas materiais, que os impossibilitam de alcançarem o Bem Supremo. Dentro da caverna, formariam seu corpo de verdades, porém essas não passariam de puras ilusões, de falsificação do mundo inteligível.
Como é possível perceber, existem dois mundos: um dentro e um fora da caverna. A caverna seria o que hoje chamamos de “bolha” e nessa bolha circulam sombras que delineiam falsas verdades, “fake news”, no linguajar moderno! Quem está fora da bolha não consegue comunicar a realidade para dentro da bolha porque quem está dentro não aceita a verdade, não quer vê-la e assim, hostiliza e trata com violência quem busca resgatar o outro. As sombras projetadas dentro da bolha funcionam como ecos e projeções distorcidas das imagens e dos sons reais.
Numa analogia com o texto, os tempos sombrios atuais nos mostram o mesmo que o Filósofo viu: muitos são os que vivem na caverna, rodeados de sombras e manipulados por elas. Elas são projetadas com o único objetivo: manter todos na caverna, no cercado ou mesmo no curral, encurralados.
Essa perspectiva me vem no momento que leio algumas matérias jornalísticas, que olho para o passado não tão distante e olho para o hoje. Fomos bombardeados de informações manipuladas, distorcidas ou mesmo mentirosas com o objetivo claro da manipulação e da ruptura democrática. Democracia esta que busca resgatar o que há de humano em nós através da inclusão, da equidade e da justiça social.
Tudo começa com o “velho fantasma do tal comunismo”, que nunca existiu no Brasil, e para fortalecer a tese anticomunista, utilizou-se sempre da religião e da ignorância do povo. Engana-se, no entanto, quem acredita que esse cenário faz parte do passado. Não esqueçamos que o lema “deus, pátria, família” estava presente no nazismo alemão, no integralismo brasileiro e, mais recentemente, na campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro. É bom lembrar também que esse deus nunca existiu, que a pátria idealizada era um abismo social gigante e que a família era a da elite dominante, não a nossa, das classes oprimidas na base da pirâmide social.
Mas dando um salto na história para os tempos mais recentes, é possível perceber que a tentativa de ruptura democrática começou mesmo em 2012 e foi se aprofundando, se afunilando e a gente não teve a capacidade de reação necessária para um enfrentamento com as mesmas armas porque os valores que nos guiam são diferentes da moral destes neointegralistas brasileiros. Esse afunilamento foi sendo norteado pela classe política da extrema direita que pactuou com as igrejas fundamentalistas, e com os saudosistas da ditadura e do integralismo, resultando no golpe de 2016 que afastou a então presidenta Dilma Rousseff, elegeu Bolsonaro e pariu a o nazifascismo, culminando com os atos terroristas do fatídico 08 de janeiro de 2023.
É triste olhar para o cenário posto. Essas pessoas se tornaram terroristas em nome do deus, da pátria e da família dos seus líderes. Muitos não passam de capitães do mato e de zumbis (mortos-vivos) que não conseguem e não querem sair da caverna. A luz lhes cega, preferem o comodismo das sombras nefastas que lhes cobre a alma e a consciência.
Não acredito que essas pessoas saiam da caverna algum dia. Elas estão lá desde muito, alguns desde a colônia, outros desde o surgimento do integralismo, outros entraram com o golpe de 64, outros no golpe de 2016 ou até antes. Mas o fato é que precisamos compreender o grau de manipulação e compreender que são muitos os que manipulam, bem como são muitos os manipulados. Mas já diz o ditado: “quem não aprende pelo amor, aprende pela dor” e exatamente por isso, é preciso que se punam os atos terroristas, as atitudes violentas, mesmo que sejam apenas verbais, e a todos aqueles que atentaram contra a democracia, mesmo antes do 08 de janeiro, e após esse dia. A punição será o caminho da dor e poderá ajudar àqueles que ainda estão cegos e insistem em permanecerem cativos na caverna da mediocridade moral e intelectual.
A democracia triunfou até agora, mas só estaremos livres das correntes quando, além de enxergarmos a luz fora da caverna, conseguirmos extirpá-la definitivamente para que todas as pessoas possam acessar livremente e por vontade própria, a luz da verdade que guia os caminhos da democracia, combatendo cada germe de conhecimento banal ou vulgar e cada fake news surgida nas trevas da caverna, resgatando a humanidade em nós através da inclusão, da equidade, da justiça social e da coletividade que faz jus a uma verdadeira República.